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 | Henry Milleo/Gazeta do Povo/Arquivo
| Foto: Henry Milleo/Gazeta do Povo/Arquivo

Dez anos se passaram desde a criação da Lei Maria da Penha e, apesar da pouca idade, a conquista de um feito resume a importância da primeira legislação de combate à violência doméstica no Brasil: ela é uma das leis mais conhecidas pelos brasileiros. Entretanto, o cenário de agressões a mulheres ainda é assustador. O país tem 735 mil processos em andamento na Justiça em apenas 14 estados. Somente em 2015, 941 casos novos por dia chegaram a esses tribunais.

Em encontro sobre violência doméstica, homens negam agressões

“Simplesmente, num momento de raiva, xinguei minha ex-mulher e agora estou aqui. A mulher sempre é a vítima. Ela coloca isso na cabeça e usa contra a gente”, reclama o pedreiro João, 50 anos, em sua primeira reunião no grupo “E agora, José?”, em Santo André, no ABC Paulista. Criado em 2014, o projeto acompanha autores de violência doméstica contra mulheres.

Como a maioria que debuta no encontro, João passou as duas horas de uma das reuniões que o Globo acompanhou negando a agressão e atacando a Lei Maria da Penha.

“Meu primeiro casamento foi tranquilo porque ela não era metida com a Justiça. Já dessa, deixei estudar Direito, ficou entendida das leis e deu nisso. Criei uma cobra “, continua ele.

O psicólogo Paulo Cagliari, um dos cinco profissionais que acompanham o encontro, interrompe e faz um alerta: “Seu discurso está impregnado de machismo”. Mas o homem insiste:

“Qualquer bicho manso, se cutucado, ataca. É a defesa dele. Não estão brigando por direitos iguais? “, questiona o pedreiro.

André, de 23 anos, tenta acalmar os ânimos. Ele alega que também não fez nada, que está ali “por uma armação da companheira”, mas, admite, precisou de cerca de 13 encontros para enxergar que sempre foi explosivo:

“Não fiz nada. Ela que inventou um B.O. (boletim de ocorrência), mas hoje entendo que é preciso um trabalho assim desde cedo. O homem precisa aprender que a força dele é maior que a da mulher”.

Cada agressor é obrigado a comparecer a 20 reuniões para amenizar a pena. Eles são encaminhados por decisão da Justiça, sob fiscalização da Central de Penas Alternativas.

Cinquenta e três homens já passaram pelo projeto, uma parceria da Secretaria de Políticas para as Mulheres com o Tribunal de Justiça de Santo André e a Secretaria Estadual da Administração Penitenciária.

O perfil é variado. Há advogados e policiais, entre outros, com idades entre 22 e 72 anos. Casos mais graves, como homicídio ou tentativa de homicídio, não são incluídos.

Francisco, de 26 anos, prestes a concluir os encontros, fica no canto da sala, calado, enquanto brinca com a aliança na mão direita. Ele se casa no fim do ano, após um namoro de sete anos terminar com o braço da ex roxo.

“Ele me contou que agrediu a ex. Fiquei bem chateada, mas não podia largar mão. Ele falou que queria mudar e resolvi ajudar. Durante todo o tempo em que estamos juntos, nunca me xingou nem levantou a voz. Quando eu começo a discutir, ele diz que não está a fim e sai. Ele realmente mudou”, conta a namorada do rapaz.

Os números fazem parte de um levantamento feito pelo jornal O Globo nas últimas semanas em todas as regiões (Rio de Janeiro, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Pernambuco, Ceará, Santa Catarina, Paraná, Distrito Federal, Mato Grosso, Amazonas, Tocantins, Piauí, Espírito Santos e Roraima).

O número de processos no Rio de Janeiro representa 19% desse total (139 mil). O Tribunal de Justiça de São Paulo, maior do país, não soube informar o volume de ações penais no estado. O mesmo se repetiu em outros 12 tribunais.

Denúncias cresceram

Apesar da existência de uma secretaria destinada a cuidar de políticas para mulheres no governo federal, há falta de dados estatísticos. Não se sabe quantos agressores são condenados.

No próximo dia 7, a Lei Maria da Penha completará uma década de existência. Entidades em defesa dos direitos das mulheres afirmam que seu maior legado é o fim do silêncio das vítimas. Para elas, o volume de processos judiciais indica a mudança de postura e não um aumento da violência.

“Por muito tempo se pensou que a solução para a violência em casa tinha que ser buscada no próprio ambiente doméstico. A lei deu uma contribuição enorme para romper com essa mentalidade quando definiu que a denúncia não precisa partir só da vítima”, disse a promotora de Justiça de São Paulo Valéria Scarance.

Desde a nova lei, as denúncias ao Disque 180 cresceram 605% — de 12.664 em 2006 para 76.651 no ano passado. Na Justiça de Pernambuco, as ações penais aumentaram 841% — de 1.796 novos processos, em 2007, para 15.120.

A Lei Maria da Penha endureceu a pena ao agressor e ampliou a proteção à vítima, com medidas protetivas. Crimes de ameaças e lesão corporal são a maioria dos casos. Pela natureza leve, poucos agressores vão para a prisão. É aí que promotores e juízes entendem estar o principal desafio da lei nos próximos dez anos: voltar o olhar ao agressor e oferecer um atendimento de reeducação para reduzir a violência.

A iniciativa existe em outros países e começa a caminhar no Brasil. Mas ainda é vista como um tabu. Somente foi adotada em dez estados.

“É uma proposta cheia de controvérsias no próprio movimento de mulheres. Muitos defendem que os recursos, que são poucos, devem priorizar a vítima e não o agressor”, explica Marisa Sanematsu, do Instituto Patrícia Galvão, ONG que atua em defesa dos direitos da mulher.

Apesar da polêmica, o encaminhamento para grupos de ressocialização começou a ser feito por juízes. Agressores são obrigados a participar de reuniões num modelo similar ao existente para usuários de álcool. Nos casos hediondos, como homicídios, estupro e tortura, o caminho continua sendo o encarceramento.

“Botão do pânico” em três cidades

Não há dados sobre o índice de impunidade em casos de violência doméstica. O que se sabe é que, além da morosidade da Justiça, outro fator tem forte influência sobre o desfecho das ações: muitas mulheres recuam da denúncia.

Um dos primeiros casos de repercussão nacional após a aprovação da lei segue impune. Paulo Eduardo Costa Steinbach atropelou e matou a mulher grávida, Yara Margareth Steinbach, na saída de uma clínica em Florianópolis, por ciúmes. O crime foi em novembro de 2006. O acusado chegou a ser preso, mas o julgamento ainda não foi marcado, à espera de uma decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Ele está em liberdade.

O Mapa da Violência divulgado em 2015 mostrou que metade dos 4.762 homicídios de mulheres em 2013 teve como autor um familiar da vítima, sendo 33% o parceiro. De 1980 a 2013, 106.093 mulheres foram mortas. Ano passado, um estudo indicou que a Lei Maria da Penha diminuiu em 10% a taxa de homicídio contra as mulheres.

Vitória (ES) apareceu com a segunda maior taxa de feminicídio em 2013. A Justiça estadual então resolveu testar o “botão do pânico”, dispositivo eletrônico que pode ser acionado pela mulher quando o agressor não mantém a distância garantida por lei. Em três anos, foram 23 atendimentos e 11 prisões. Apenas outras duas cidades já adotaram a medida: Jaboatão dos Guararapes (PE) e Limeira (SP).

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