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Marília Iasi Keller, autora do livro Divisor de Águas – a Perda de um Filho, da editora Edições Inteligentes | Marcelo Elias/Gazeta do Povo
Marília Iasi Keller, autora do livro Divisor de Águas – a Perda de um Filho, da editora Edições Inteligentes| Foto: Marcelo Elias/Gazeta do Povo

Ponta Grossa - A mulher que perde o esposo é chamada de viúva e o filho que perde os pais vira órfão, mas não há no dicionário um termo que designe o pai ou a mãe que perdeu um filho. A crença de que a lei da natureza determina que os mais velhos morram antes dos mais jovens dificulta ainda mais a compreensão do que é enterrar o corpo do próprio fi­­lho. No livro Divisor de Águas – a Perda de um Filho, a escritora Marília Iasi Keller retrata sua experiência ao perder o filho Rafael, de 23 anos, morto num acidente de carro em 2003.

O livro é voltado a todos os públicos porque discute a preparação para a morte. "A gente sempre acha que vai acontecer com o outro, não encaramos a morte", afirma a paulistana, que hoje mora na Lapa, onde coordena um spa. Além das enfermidades, a violência mata milhares de jovens todos os anos. Em 2009, os pais de Osíris Del Corso, 22 anos, assassinado no caso conhecido como crime do Morro do Boi, e dos colegas Gilmar Rafael Yared, 26 anos, e Carlos Murilo de Almeida, 20 anos, vítimas de um acidente de carro causado pelo ex-deputado estadual Fernando Carli Filho, vivenciaram essa realidade, como muitos outros pais.

Depois de perder o filho com 23 anos num acidente de carro, você pesquisou o tema. Quais os tipos de reações mais comuns que são verificados após a perda de um filho?

Pelo que eu pesquisei e pelas conversas que eu tive, é muito comum, quando os pais são casados, se separarem porque eles não conseguem lidar com isso. Outra situação é a da negação, você faz de conta que o filho foi embora para a Austrália e não se toca mais no assunto. Muitos homens adquirem o vício da bebida alcoólica. As mulheres também, mas os homens principalmente. Enfim, existem essas tendências. Mas muitas pessoas têm o apoio da família e dos amigos e tudo pode ser diferente. Outros ainda podem frequentar um terapeuta. É claro, você fica triste sim, mas por amor ao seu filho você o homenageia com a vida ao invés de ficar prostrado numa cama, tentar se matar...

E qual é o comportamento menos doloroso para os pais?

Eu não sou ninguém para dar receita, mas poderia ajudar com minha experiência. Eu não neguei a dor, conversava com algumas pessoas, mas também não queria falar com ninguém em alguns momentos. Chorava também. Você não planeja que o seu filho vai sair e morrer às duas e meia da tarde. Então, você tem que reorganizar sua vida, apesar da dor. Depois do que eu vivi, tenho um olhar de compaixão para os problemas das outras pessoas. A gente tem que procurar ajuda, se precisar de um terapeuta, de um padre ou de pessoas que passaram pelo mesmo problema, deve procurar. É como no Alcoólicos Anônimos, onde você encontra uma pessoa que passou pelo mesmo problema e está conseguindo se superar, é um incentivo para você. Seu filho não gostaria de ver você toda largada. Tem que passar batom, ir ao cabeleireiro sim.

Como lidar com as lembranças? Há muitos pais que deixam o quarto do filho intacto após a morte.

Tem várias pessoas que guardam tudo e fica com cheiro de naftalina, pode ficar até patológico. No meu caso, eu guardei uma camiseta que tinha a cara dele e uma jaqueta, que às vezes uso, mas está lavada. O restante das coisas dele eu doei. Algumas coisas pessoais, como a última agenda dele e os óculos eu guardei. É claro que o pai e a mãe têm direito de guardar o que quiserem, mas as lembranças são mais importantes. O primeiro passo, os abraços, as broncas... Porque não é todo dia que está tudo bem, tem dias em que você precisa ser firme com seu filho. Antes eu via todos os dias os objetos do meu filho, hoje em dia eu vejo mais ocasionalmente. Você acaba aprendendo a conviver com isso. Eu costumo dizer que é uma cicatriz que às vezes sangra, tem dias que você está melhor, mas tem dias que você está mais frágil.

Há um recomeço após a perda de um filho? De que maneira?

Eu chamo de ressignificar a vida. Na verdade, aquela vida que você sempre sonhou não existe mais daquele jeito. A Marília, mãe do Rafael, não existe mais. Não é recomeçar a vida, porque não dá para voltar para o começo, mas é ressignificar a vida, pensar que vou usar a vida para homenagear o meu filho, voltar a ir ao cinema, me arrumar... Eu me lembro que um tempo depois que meu filho morreu, eu dei uma risada de alguma coisa que alguém me contou e eu fiquei assim meio esquisita, parece que você se culpa por voltar a rir, mas depois você percebe que o mundo continua. Você acorda todos os dias, seu coração bate, a vida se impõe.

A violência e os acidentes de trânsito fazem milhares de vítimas jovens todos os anos. De que maneira os pais podem enfrentar esse problema?

Existem algumas mortes mais difíceis do que outras, mas todas são muito dolorosas porque existe uma ruptura. Depende muito de como a pessoa é antes da tragédia. Se é uma pessoa pessimista e agressiva, vai olhar a situação de uma forma. Mas, se amou e cuidou do filho, não se sentirá culpada. Os pais que se separaram e nunca deram atenção ao filho que se foi, vão sentir remorso. Por isso eu acho que você tem de amar e corrigir o seu filho todos os dias como se fosse o último. Avisar ao filho que quando ele for sair e ficar um pouco alto, que pegue um táxi ou ligue para os pais irem buscar, independentemente da idade. Os jovens hoje acham que podem fazer tudo, não há mais parâmetros. O jovem acha que pode pegar o carro e andar a 200 quilômetros por hora que não vai morrer. Mas é preciso tratar isso em casa e na escola, educar a nossa sociedade. Se não houver uma lei mais eficaz, os jovens vão continuar saindo e bebendo e batendo os carros ou puxando uma arma numa discussão. A regra é: amor e educação aos nossos filhos nunca é demais.

Como surgiu a ideia de escrever um livro sobre a sua experiência?

Eu fui viajar para Santiago de Compostela, na Espanha, e na volta resolvi escrever sobre tudo o que aconteceu. Percebi que nas livrarias havia poucos livros sobre isso. Existiam alguns espíritas e de crianças que morriam prematuras, mas não um livro de um menino lindo, de 23 anos, que morreu às duas e meia da tarde num acidente. Resolvi escrever como tudo aconteceu, infelizmente, preferia nunca ter escrito este livro, mas foi importante porque o material que temos é muito escasso. Este livro está ajudando muitas pessoas no Brasil e em Portugal. Recebo muitos e-mails. As pessoas conseguem ter forças novamente e ganham fôlego.

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