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| Foto: KHALIL MAZRAAWI/AFP

O alemão Kilian Kleinschmidt dedicou as últimas três décadas ao humanitarismo. Foram 25 anos no Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), em ações no Quênia e Congo, na África, e na Caxemira, no Oriente Médio. Recentemente, coordenou a operação da agência em Zaatari, no Norte da Jordânia, principal destino de refugiados da guerra na Síria. De lá, partiu para criar uma consultoria em humanitarismo, a Switxboard.

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Defensor de ofertar boas condições às pessoas, acima de tudo, Kilian defende que um caminho para melhorar a vida dos refugiados é assumir que os campos não são mais lugares temporários. Mas as novas moradas desta população. O debate fica ainda mais urgente com a perspectiva de que a migração aumente cada vez mais, nas próximas décadas, com as mudanças climáticas e a globalização. Ele falou sobre esses e outros temas à reportagem da Gazeta do Povo. Confira:

Você declarou que os campos de refugiados podem ser considerados as “cidades do futuro”. Pode explicar o porquê?

Antes de tudo, eu considero que as cidades são campos de refugiados. Um centro urbano é um local onde há uma rápida urbanização tomando conta. As pessoas buscam novas oportunidades, segurança, fogem da pobreza e da falta de acesso que existe no campo. Então, de certa, forma as cidades são campos de refugiados, para aquele conceito inicial. Atualmente, criamos locais especiais, onde cerca de 10% dos refugiados estão acomodados, e isso só em campos oficiais. É um grande problema. Primeiro porque estamos tratando as pessoas quase como se elas fossem aliens, estabelecendo formas de mantê-las em condições básicas sem permitir oficialmente que aquele espaço se desenvolve em um local habitável. A tendência é vermos ver mais e mais pessoas em trânsito no mundo por causa da globalização e das mudanças climáticas. Globalização significa que as pessoas pobres tentam chegar nos lugares onde estão os ricos. Então os locais em que os refugiados estão acomodados vão ser novos centros populacionais quer a gente queira, quer não. Se você pensar que dentro de alguns anos 75% dos seres humanos vão viver em centros urbanos, esta questão é muito importante, na minha opinião.

Podemos comparar o crescimento dos campos de refugiados ao das favelas brasileiras?

Com certeza. A diferença para as favelas é que nos campos de refugiados o governo ou alguém faz de conta que está administrando aquele espaço. Mas além disso são lugares onde as pessoas vão para buscar novas oportunidades, à sua maneira. Então não vejo porque olharmos para os dois de forma diferente. Já tentaram criar diferenças entre os seres humanos dizendo “você é refugiado”, “você é migrante” ou “você é alguém que está se mudando do campo para a favela por motivo de pobreza”. Eu acho isso muito perigoso. Temos que olhar para o que é necessário para um ser humano viver, não só em termos de dignidade, mas que ele possa ter acesso àquilo que o mundo pode oferecer. Esses não devem ser lugares de tristeza e miséria, e sim onde as chances de mudança são acessíveis, estimuladas, onde há o começo de uma nova vida, e você [morador] é parte disso. Então, de novo: não me importa se eles são refugiados, pobres, migrantes ou qualquer outro termo.

A Acnur (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados) parece considerar refugiados urbanos e em campos como categorias diferentes. Você concorda?

Eu trabalhei para a Acnur por 22 anos; a prioridade deles é socorrer e prestar primeiros socorros às pessoas quando elas precisam. Isso é uma coisa. Agora, se temos em mente que muitos destes lugares vão se estabelecer e continuar ali para sempre, aí acho que a Acnur erra ao não se equipar dos melhores especialistas, de um lado, e ao não repassar o controle àqueles que têm experiência em gerir centros urbanos novos e crescentes. Se você olhar para os campos na Palestina, África, Paquistão, Irã, todos se tornaram centros urbanos. Eu trabalhei em dois campos no Quênia que evoluiram para centros urbanos. O problema é que as organizações não têm ideia de como gerir ou planejar serviços nestes locais. É até perigoso, porque os sistemas se desenvolvem sem nenhuma capacidade de crescimento. De forma geral, hoje a Acnur diz “ei, vocês não deveriam ter campos de maneira nenhuma”. Mas a realidade bate à porta. O campo é parte da solução quando você tem um número gigantesco de pessoas mudando de país e simplesmente não há mais espaço. E eu não acho que a Acnur ou qualquer agência humanitária tenha condição de gerir um espaço de convivência entre as pessoas por mais de seis meses.

O que significa dizer que 17 anos é o tempo médio de duração das “situações de refúgio”?

Há um grande debate em torno deste número. Houve uma confusão na minha entrevista à revista Dezeen, porque esse não é o tempo médio de permanência no campo, mas de duração da crise. Eu nem posso te garantir, mas esse é o dado da Acnur. E tem outra: quando você passa a ter esse status especial, ser um refugiado? Uma das melhores camisetas que a ONU reproduz é aquela com a frase “Einstein foi um refugiado” [o cientista fugiu da Alemanha para os Estados Unidos, às vésperas da Segunda Guerra Mundial]. Então a questão é: quando você deixa de ser um refugiado? Deixa de ser alguém que está fora do lugar, uma vítima? O Canadá, por exemplo, já recebeu mais de seis mil sírios vindos da Jordânia e do Líbano. Eles não chegam como refugiados, são cidadãos. Claro que ainda sonham em voltar para casa algum dia, mas não têm aquele status de refugiado. São novos cidadãos canadenses.

Você chefiou a missão da Acnur no campo de Zaatari, na Jordânia, certo?

Correto. Trabalhei na Acnur e fui o responsável pelo campo.

O campo lá parece ter se urbanizado em questão de poucos meses. Pode nos contar um pouco mais?

Foi tudo muito rápido. Tem um pouco s ver com os sírios, eles são muito empreendedores. E não aceitavam a maneira como a Acnur os tratava. Eles praticamente expulsaram do campo os militares e a polícia jordaniana. Construiram suas próprias casas, à sua maneira. E havia todas aquelas lojas, é claro, de coisas que eram ilegais. Foi a maneira deles de lidar com a crise e mostrar a todos que eram independentes.

Pelas imagens, parece que eles não construíram apenas casas, mas mercados, pequenos hospitais. É isso mesmo?

Claro. A BBC fez uma reportagem lá em 2014, onde dá para ver como é incrível: em um ano eles já tinham se estabelecido, aberto mais de mil lojas que giravam, mensalmente, mais de dez, 12, 20 milhões de euros. Isso dá 50 milhões de dólares. É muito empreendedor. As pessoas basicamente trocam tudo, porque para elas é óbvio que suas necessidades são diferentes daquilo que as agências humanitárias podem prover. Então eles recebiam esta distribuição e vendiam a maior parte das coisas para comprar coisas novas, coisas que eles realmente quisessem. E isso é mais uma prova de que o sistema de humanitarismo como um todo está errado.

As Nações Unidas parece ter se arrependido da política que adotou nos anos 1990, quando descartaram a ida de refugiados para as grandes cidades e passaram a priorizar os campos. Qual o impacto desta mudança de política?

Quando há milhões de pessoas em um país pequeno, é impossível evitar o surgimento de algo como um campo de refugiados. Porque simplesmente não há espaço no ambiente normal, urbano ou rural, para acomodar todo mundo. Lembrando que 90% dos migrantes e desalojados de todo o mundo não estão em campos, mas no meio da população. Mas sempre vão estar em algum lugar em que precisam de novos assentamentos. Tudo bem, pode não ser um campo, mas é preciso agir o mais rápido possível se considerar aquilo como uma extensão das cidades já existentes. De novo, o problema é que as agências humanitárias não têm nenhum conhecimento sobre como lidar com desalojados ou refugiados vivendo em ambientes urbanos, ou em campos de longa duração. Por isso na Jordânia nós estabelecemos uma parceria com a cidade de Amsterdã, para adquirir experiência, com um intercâmbio entre a prefeitura de lá e a de Mafrag, que é a maior cidade nas proximidades de Zaatari. Eles também foram trabalhar no campo, porque é uma cidade, afinal de contas. A companhia de transporte de Amsterdã trabalhando com a companhia da Jordânia, o departamento de transporte de lá trabalhando com o pessoal dos transportes, e por aí vai. Isso faz sentido. Mas a ONU precisa entender isso. Quando eu deixei a administração do campo, em 2014, eles ficaram sem saber o que fazer. Esta é uma ideia que os holandeses agora estão levando para o Líbano e outros lugares. Ter uma parceria cotidiana e uma troca entre municípios.

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