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Key na casa das Mercês: desenho do ídolo Will Eisner na parede e biblioteca paranista reinando no piso superior. | Marcelo Andrade/Gazeta do Povo
Key na casa das Mercês: desenho do ídolo Will Eisner na parede e biblioteca paranista reinando no piso superior.| Foto: Marcelo Andrade/Gazeta do Povo

O sobrado simples, de jardim vistoso, em que vive o arquiteto Key Imaguire Junior pode até passar desapercebido em uma rua ainda repleta de casas no bairro das Mercês. De fora, é um imponente bonsai de jabuticabeira que se impõe de uma janela do segundo andar. Um tsuru, de origami, pendurado logo acima quase repousa na copa daquela árvore. “Meu filho foi criado brincando na rua, um privilegiado, com uma infância de interior. Hoje essa rua já é bem mais movimentada”, observa.

O barulho dos carros reforça a afirmação. Curitibano nascido e criado no São Francisco, Key fincou as raízes no bairro vizinho, com a mulher, Marialba, e o filho, Key San. E é dali que observa a transformação de Curitiba, cidade que se dedicou a conhecer, desvendar e até influenciar.

A outra face de Key Imaguire

Apaixonado por todas as artes, o arquiteto e professor aposentado Key Imaguire mantém um acervo precioso de quadrinhos. Ele foi o idealizador da Gibiteca de Curitiba, a primeira do Brasil.

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“Queria que não tivesse crescido tanto”, confessa. O temor é pela descaracterização da cidade, em parte pelo avanço do mercado imobiliário, que tratora construções antigas para erguer novos e altos prédios, muitos de gosto duvidoso. Essa verticalização acaba por destruir o patrimônio histórico pelo qual o arquiteto tanto trabalhou. E leva junto algumas características que são daqui, como o pãozinho d’água, que perdeu espaço nas padarias para o francês. “Nosso dialeto, nosso jeito meio esquivo e os gestos, o urbanismo tem a ver com isso”, pondera.

Parte da vida profissional foi dedicada a pesquisar a arquitetura como produto cultural. Uma guinada para o jovem que, encantado com pontes, tinha pensado em seguir carreira na engenharia. O estalo para a mudança foi uma viagem, organizada pelo pai, curioso para conhecer Brasília, a nova capital do país. Em 1962, a família desembarcou na cidade. “Era uma coisa surrealista”, lembra Key. Na época, com 16 anos, impressionou-se com o contraste entre o avermelhado do Planalto Central e o branco dos projetos de Niemeyer. Foi o que o levou a buscar uma cadeira no novo curso de Arquitetura da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Na academia, não se adaptou à área de projetos. “Você faz tudo na arquitetura, menos o que você quer”, pontua, lembrando da interferência dos contratantes e engenheiros nos desenhos. Quem trouxe a sugestão de trabalhar com patrimônio cultural foi o professor Cyro Correia Lyra, que também o incentivou a assumir a cadeira de Arquitetura Brasileira na universidade. “A ideia de dar aula não me fascinava, mas a pesquisa me chamou”. A carreira acadêmica foi profícua. Além de lecionar para novos arquitetos, estudou História no mestrado e doutorado, também na UFPR. Aposentou-se há cinco anos, debaixo de protestos dos alunos.

Um sinal do espaço*

“Sou um produto da Universidade Federal”, brinca. A afirmação não se restringe apenas aos passos de Key, mas tem a ver com os caminhos que levaram seus pais a se conhecer. O avô decidiu deixar o Japão depois de ouvir maravilhas sobre o Brasil. Chegou em Santos, onde trabalhou por um período e foi descendo, pelo interior de São Paulo e Paraná, até se fixar em Ponta Grossa. A mudança definitiva, para Curitiba, só aconteceu quando o pai de Key estava com idade para frequentar o curso superior. De outro lado, a avó materna, açoriana que vivia em Florianópolis, matutava uma maneira de encontrar maridos para as filhas. A ideia foi buscar uma cidade com oportunidades para a família e uma universidade, que certamente atrairia estudantes de diversos locais. A escolha recaiu sobre Curitiba.

Os pais se conheceram ainda jovens: a mãe tinha apenas 14 anos. Da união de um dentista e de uma dona de casa, nasceram dois filhos – Key tem um irmão que vive em Curitiba e é engenheiro mecânico. A infância no bairro São Francisco, nos arredores da Praça Garibaldi, não se deu à solta. A mãe tinha medo e não permitia que os filhos brincassem na rua. Os primeiros bancos escolares foram os do Colégio Martinus, ali perto. Mais liberdade foi alcançada quando Key começou a cursar o então Científico, no Colégio Estadual do Paraná.

“Só na hora que fui morar sozinho é que conheci mesmo Curitiba”, revela. A mudança foi feita quando começou a faculdade de Arquitetura, na UFPR. O endereço escolhido foi a Praça Zacarias, onde mantinha um pequeno apartamento. O imóvel não desagradava: era próximo da cinelândia curitibana e adequado para o então estudante. A casa das Mercês, construída como investimento pelo pai, só tornou seu endereço definitivo pouco antes do casamento, em 1981.

Os anos de aluno da Federal foram bons: o curso novo movimentava o Centro Politécnico. A Arquitetura trouxe mais diversidade para os corredores da UFPR, mais estímulo pela busca do conhecimento e discussões políticas. “O pessoal da engenharia estranhava um pouco essa abertura. Diziam que arquiteto era comunista ou bicha. Ou os dois”, lembra-se, ao risos.

Foi nesse período que a fotógrafa Vilma Slomp conheceu Key. Ainda adolescente, ela acabou sendo apresentada ao círculo dos estudantes de Arquitetura pela irmã e o cunhado. Frequentou festas, sessões de cinema e jantares. “Os arquitetos eram muito antenados na cultura”, lembra, o que dizia muito em tempos de ditadura militar. Criaram uma amizade – Vilma até fotografou o casamento do arquiteto. “Ele é muito inteligente, culto, simples na sua forma de ser, antenado ao meio social. Faz parte do patrimônio cultural, histórico e humano da cidade”, decreta.

Ao coração da tempestade*

Os primeiros passos na profissão foram no Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (Ippuc). Ali Key conheceu o também arquiteto Domingos Bongestabs. “Ele era aficcionado por histórias em quadrinhos e começou a me levar gibis. Depois, fui trabalhar com ele”, lembra. Os quadrinhos se fizeram mais presentes a partir desse encontro.

Nos idos de 1960, o gênero tinha má fama no Brasil, creditada a um livro, que nem publicado no país havia sido. Seduction of the innocent (Sedução dos Inocentes, em tradução livre), obra do psiquiatra alemão Frederic Wertham, trazia a tese de que as histórias em quadrinhos eram uma forma ruim de literatura popular e fator para a delinquência juvenil. No Brasil, a tese do alemão se espalhou como pólvora pelas publicações da revista Seleções.

Por algum tempo, o único gibi que caía às mãos de Key era o Sesinho, da revista do Sesi. Bongestabs mudou esse panorama. Dali em diante, Key começou a formar seu acervo impressionante. Entre Will Eisner e Hergé, há espaço para mangás, deboche, sátiras e produção local. O amigo José Humberto Boguszewski, professor de Design na UFPR, brinca que Key é o José Mindlin Paranista das publicações de quadrinhos, gibis, cartuns, arquitetura e objetos gráficos afins, em referência ao célebre bibliófilo brasileiro.

“Key sempre foi muito engajado, muito participante, principalmente na área dele. É a pessoa que criou a Gibiteca de Curitiba. A ideia original é dele. É humilde, gosta de ficar no canto dele. Mereceria mais destaque do que tem pela importância do que já fez, como professor, historiador e na área de quadrinhos”, observa.

Os dois se conheceram ainda estudantes. Boguszewski cursava Belas Artes, desenhava e também gostava de quadrinhos. Fazia parte da turma que editava uma revista chamada Casa de Tolerância. Embora remeta a erotismo, a revista tinha quadrinhos “normais”. A tolerância estava no fato de que qualquer um poderia fazer parte. Por um tempo, a revista foi editada no escritório que Key mantinha no Centro.

A falta de um espaço adequado para a produção deu outro estalo: por que não criar uma gibiteca em Curitiba? Key teve o lampejo quando trabalhava na Casa Romário Martins. O espaço reuniria uma biblioteca de gibis e serviria para formar autores. Diz que “só” teve a ideia. A movimentação política para tornar a sacada real foi articulada pelo jornalista Aramis Millarch, que levou a proposta para o então prefeito Jaime Lerner. Em 1982, nasceu a primeira gibiteca do Brasil. “São as duas coisas da minha vida, a arquitetura e o gibi”, resume.

Assunto de família*

Na miscigenação cultural que formou a família de Key, o DNA japonês falou mais forte. “Tenho manias de japonês. As coisas têm uma maneira para serem feitas. Nem sempre é a melhor, mas se não sair daquele jeito, me incomoda”, confessa. A organização é outra característica. Em sua casa, quatro quartos do piso superior abrigam os livros, catalogados e ordenados por temas. Há a sala dos quadrinhos, as estantes de livros técnicos e dicionários. Com carinho, um pequeno espaço guarda relíquias: os títulos que costumava ler na infância. A mãe se desfez dos livros, mas Key reuniu o acervo vasculhando sebos.

A mulher, Marialba Rocha Gaspar Imaguire, entrega: ele tem as aulas de quando cursou arquitetura encadernadas. E não apenas isso. Cada viagem ganha um álbum especial e as expedições arquitetônicas, comandadas por ele e que levaram alunos a diversos lugares do Brasil, também têm seus roteiros guardados. “Não confio no virtual”, conta Key, ao mostrar o tomo correspondente a um ano de postagens em seu blog pessoal, criado em 2013 como um escape.

O casal está junto há 34 anos. Key conta que Marialba foi sua aluna e assim que se conheceram ficaram amigos e se tornaram namorados. Ela conta um pouco mais. Antes de ser aluna de Key na PUCPR, candidatou-se a uma vaga de estágio na Casa Romário Martins, onde ele trabalhava. “Lembro que quando entrei, ele me deu uma paquerada e fiquei toda vermelha”, relembra. Mas puxando pela memória, a primeira vez que ela viu o futuro marido foi quando era adolescente. “Tinha mudado para o Alto da XV e havia um grupo de pessoas na frente de casa. Ele estava lá”, diz. Pensou: um dia hão de se conhecer. Dito e feito.

Culturalmente, Key se identifica muito com a Itália, país que visitou algumas vezes. “Sou apaixonado pela Itália. Não tenho sangue italiano, mas meu filho tem”, diz, brincando com a ascendência da mulher. Com Marialba, divide a vida, o gosto pela arquitetura e patrimônio histórico e por viagens. “Um é complemento do outro”, emenda Marialba.

Na casa, cada canto traz um pedaço da história – seja o boneco Samurai e o carimbo da família Imaguire vindos do Japão ou pequenas lembranças de passeios. Pelas paredes, estão quadros com desenhos feitos por amigos, que os presentearam. Tem até um desenho do herói Spirit, de Will Eisner, com dedicatória do autor.

Os dois se conheceram num Salão da Caricatura em Montreal, caminharam juntos pela cidade canadense e trocaram correspondências. Os quadrinhos de Eisner agradam a Key não apenas pelas histórias, mas por trazerem a própria arquitetura das cidades como personagem.

O quadro é mais uma entre tantas peças que trazem lembranças e se acumulam pelas escadas e prateleiras. Ainda há espaço com os bonsais – são pelo menos três, além da jabuticabeira, que marca sua aposentadoria da federal – e para os cães, que lembram o lado cordial. No quintal, há um vaso com três plantas, que eram cuidadas pelo pai, já falecido. “A ideia de casa é essa: estar no meio das coisas que a gente gosta, estar aonde quer”, resume.

*Os intertítulos fazem referência a títulos de graphic novels de Will Eisner, um dos quadrinistas preferidos de Key.
  • O bonsai de jabuticaba foi um presente que Imaguire recebeu quando se aposentou da UFPR, em 2010.
  • Os livros são uma das paixões do arquiteto. Em casa, quatro quartos servem de biblioteca para 250 metros de livros, como diz sua esposa, Marialba.
  • Key Imaguire Junior em seu quintal: espaço para os cães e bonsais.
  • Em casa, desenhos feitos por amigos decoram as paredes. O Spirit, de Will Eisner, foi desenhado pelo próprio autor, com dedicatória para Imaguire.
  • Na sala, paredes repletas de desenhos que foram presentes de amigos.
  • Antes de topar participar da série, Key fez um pedido: “Aceito, se você não for muito indiscreta”, brincou aos risos.
  • Difícil mensurar em quantos projetos Key está envolvido. Pesquisador é presença discreta e silenciosa em prol da memória de Curitiba.
  • Key e Marialba vivem em meio a recordações de viagem, livros “sobre tudo” e projetos em prol da memória.
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