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Osny, um dos filhos do “Rei da Noite”: vida à parte dos negócios do pai, mas memória viva do crime que abalou Curitiba em 1966 | Brunno Covello/Gazeta do Povo
Osny, um dos filhos do “Rei da Noite”: vida à parte dos negócios do pai, mas memória viva do crime que abalou Curitiba em 1966| Foto: Brunno Covello/Gazeta do Povo

Vida noturna

Os estudos das relações de sociabilidade e cultura na vida noturna ainda são incipientes no Brasil. No Paraná, merece ser destacado o pesquisador Edson Holtz Leme, da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Nos dez anos em que funcionou, a Marrocos tinha como "parceiras da noite" a Cadiz, na José Loureiro; a Tropical, no Passeio Público; e a La vie en rose, na Visconde de Nácar. Some-se a Gogó da Ema e a La Ronda. Sem falar na Boneca do Iguaçu, em São José dos Pinhais. Os restaurantes de Santa Felicidade começavam a se formar. E os artistas e políticos continuavam jantando risoto no minúsculo Vagão do Armistício, da família Lazzarotto, no Cajuru.

Nas ondas do Rádio

O empresário Paulo Wendt atuava em parceria com os produtores de rádio locais. Juntos, faziam "combos". Em dois dias na cidade, os artistas contratados por eles faziam shows nos auditórios de emissoras como a Guairacá, Colombo e PRB2, iam a clubes, teatros e terminavam a maratona no disputado palco da boate Marrocos.

Meninos, eu vi

Ex-frequentadores da casa se recordam dos áureos tempos da Marrocos:

"Sempre fui bonzinho [risos]. Só ia à Marrocos acompanhando os artistas das rádios nas quais trabalhava. Não diria que era um espaço cultural [risos]. Boate era boate. Vivíamos numa cidade conservadora. O Paulo Wendt sabia disso, daí seu pulso firme. Tinha de lidar com os percalços da noite. Olhando dos dias de hoje, não tinha nada demais. Dava para ir à Marrocos e depois seguir para a igreja."

Renato Mazânek, 74 anos, veterano da rádio no Paraná.

"Os shows na Marrocos eram bem tarde, para segurar o público. Era um negócio bacana, mas ninguém levava a namorada lá [risos]. Numa noite, eu trouxe o Jorge Goulart, marido da Nora Ney. Antes do show, duas damas saíram no tapa. Todo mundo entrou na briga. Jogavam até sapato. O Jorge e eu nos escondemos debaixo da mesa. Até o Paulo Wendt aparecer. Ficou aquele silêncio. Caímos na gargalhada."

Ubiratan Lustosa, 83 anos, veterano da rádio no Paraná.

"Era bailarina do Marrocos, morena, olho verde, cabelo comprido. Por ela se apaixonou o Serginho, galã da noite. No fundo um tímido, jamais entrava na boate sem o cigarrinho na mão; antes, no bar da esquina, bebia cálices de conhaque num gole só."

Trecho do conto "Noites de Curitiba", de Dalton Trevisan.

"E o grande Paulo, rei da boate Marrocos, no alto de sua barriga e seus trinta e um degraus (não pagar a conta era descê-los num pulo só) exibia as gringas mais fabulosas e vigaristas – dá-me um ui’que, papito? – uma delas era sozinha a guerra do Paraguai, em cada pai de família descobriam o filho pródigo, uma noite de amor com elas era morrer um ano mais cedo, que fim levou ele e as tais que fim levaram?"

Trecho do conto "Que fim levou o Vampiro de Curitiba?", do mesmo autor.

  • O
  • Amistoso com Eder Jofre e Léo Espinosa, em 1962. Palco foi armado no Teatto Guaíra, por Paulo Wendt
  • Rui César Wendt, um dos filhos do Rei, ao lado de Eder Jofre
  • Retrato de Paulo Wendt. Crime em 1966 rivalizou na atenção popular com os glos de Eusébio
  • Empresário Paulo Wendt também promovia eventos esportivos. Era vidrado em basquete
  • Panfleto com a programação cultural criada por Wendt além da Marrocos, alta cultura
  • Panfleto de evento promovido por Paulo Wendt, que tinha casa de strip tease, mas também promovia óperas
  • Notícia publicada na Gazeta do Povo em julho de 1966. Jornal que mais reportou o crime foi a Tribuna do Paraná

Houve um tempo em que os mais piedosos se benziam três vezes antes de passar pela Rua Marechal Deodoro, 17, no Centro de Curitiba. Nessa esquina – com vista privilegiada para a Praça Zacarias – funcionava a boate Marrocos, estabelecimento cujos pecados e virtudes não eram segredo para ninguém. De 1955 a 1966, o local recebeu estrelas das rádios cariocas, expoentes do jazz e big bands debaixo dos aplausos de uma população masculina devotada à boa música. E ao "belo sexo". Os strip-teases da Marrocos roubaram a inocência de uma provinciana cidade de 300 mil habitantes.

SLIDESHOW: Confira mais fotos da Marrocos e do "Rei da Noite"

Não se tratava de nenhum Moulin Rouge. As strippers se apresentavam como portenhas, mesmo que tivessem nascido em Araucária. Os drinques eram de Cynar. Não havia um grande prato da casa, a exemplo do lendário "bife a cavalo" do Cassino do Ahú. A boite nem ao menos tinha uma grande pista de dança. Sem falar no incômodo dos degraus – 31 ao todo, parecendo mais ou menos a depender do porre e do tamanho da conta. Os leões de chácara podiam transformá-lo em um só se o cliente teimasse em sair sem pagar.

Mesmo assim, a Marrocos entrou para os anais da boemia curitibana. Tanto é que seu dono, Paulo Wendt, ficou conhecido a seu tempo como "Rei da Noite". O homem foi de tal forma reverenciado que o escritor Dalton Trevisan o eternizou em contos como "Noites de Curitiba" e "Que fim levou o Vampiro de Curitiba?", publicados no livro O pássaro de cinco asas, de 1974.

O mito

O título de "rei" caía bem a Paulo Wendt e não apenas por causa dos seus 120 quilos soberanamente distribuídos por 1,75 metro, com preferência para o abdome. Nos dez anos em que deu as cartas no basfond da capital, Wendt empresariou da diva Ângela Maria, uma das estrelas da Rádio Nacional, a Leny Eversong, a mítica crooner brasileira que cantava em francês e inglês irretocáveis – mesmo sem dizer nada mais do que I love you e merci beaucoup. Diz-se que nos shows que fez em Las Vegas, ninguém reparou. Um fenômeno.

A aterrissagem de Paulo Wendt no "turno da noite" não foi menos surpreendente. Nascido em Prudentópolis, Campos Gerais, em uma família de imigrantes de Düsseldorf, fez alguma fortuna com "representadas", como se dizia à época. Foi distribuidor da Esso. Do querosene Jacaré. Trabalhou na Souza Cruz. Teve posto de gasolina em Paranaguá. Nas horas vagas, atuava como árbitro de basquete. Era popular o bastante para sonhar com a carreira política, mas se saiu mal no pleito ao se candidatar a vereador, em 1954.

O professor Osni Wendt, 72 anos, ex-diretor do Co­lé­gio Estadual do Paraná e um dos quatro filhos do "Rei da Noite", suspeita de que o pai decidiu empresariar artistas para compensar a frustração das urnas. Teria sido sua virada. Em 1955, comprou a boate Elite, rebatizou-a como Marrocos, sem que se saiba até hoje a razão de sua simpatia pelo país. Prosperou tanto que as outras casas da época – da La Vie en Rose à Caverna do Clube Curitibano – viraram segunda opção para quando a boate do "Rei" estivesse lotada.Além de ocupar o palco da Marrocos todas as semanas com atrações que pareciam ser possíveis apenas em Copacabana, Paulo Wendt promovia óperas nos clubes Thalia, Curitibano e Country. Era topetudo: mantinha duas orquestras, uma com músicos da Aeronáutica. E tinha arroubos – em 1962, transformou o palco do Guairão em arena para um amistoso entre o campeão mundial de pugilismo Eder Jofre e Léo Espinosa. Wendt era assim, um cisco.

Num mesmo dia recebia Agostinho dos Santos, Agnaldo Rayol ou Sílvio Caldas, desembarcados debaixo do nevoeiro do Aeroporto Afonso Pena, vistoriava o atendimento no Restaurante Sanchão, na Praça Osório – um 24 horas – e estava acordado o bastante para aguardar o show da madrugada na boate. Ajuda, apenas do faz-tudo Alberto Palma, o "Palma". Só caía na cama depois das três da madrugada, quando ia a pé para seu apartamento da Rua Emiliano Perneta, 44.

Detalhe: os artistas o adoravam, pois pagava tudo adiantado, em dinheiro vivo, que retirava aos maços do bolso. Calejados de levar calote de empresários, tinham o paranaense, digamos, como um nobre. A propósito, uma das rainhas do rádio, em passagem por aqui, pediu empréstimo e lhe deu o calote. O filho Osni guardou as promissórias até pouco tempo. A devedora passa bem.Esse episódio é um dos muitos que o cercam, mas nenhum se equipara ao ocorrido no dia 13 de julho de 1966. Descrito como boa praça, o "rei" às vezes perdia a majestade com algum freguês mais saliente. Foi assim com um agricultor da colônia Tomás Coelho, conviva estranho à clientela formada por políticos, empresários e playboys. "Vim de longe para matar esse cafetão", teria gritado às duas da manhã. Sacou uma SW 22 e atirou em Paulo Wendt. Trazia também uma peixeira.

Os jornais descreveram o crime em tintins – verdadeiro faroeste nos arrabaldes da Marechal Deodoro. Tornou-se assunto mais falado do que os gols do artilheiro Eusébio, da Seleção Portuguesa, destaque da Copa do Mundo de 1966. Houve um policial atingido por bala, fuga espetacular do assassino, a prisão do atirador e a morte de Paulo, uma semana depois, no Hospital Cajuru. Tinha 51 anos. O filho Osni nunca havia posto os pés na Marrocos, mas é capaz de descrever cada cena da tragédia e o infortúnio que sucedeu ao sepultamento do "Rei da Noite".

Numa das madrugadas pós-Paulo Wendt, o ator Jardel Filho, em visita à cidade, subiu os 31 degraus, bebeu mais do que devia e só faltou dançar havaiana em cima da mesa. Foi retirado pelo colarinho e jogado na calçada, altas horas, por ordem de um irmão de Wendt que decidira tocar o negócio. Escândalo na capital. A Marrocos assinara seu estado de óbito. Morreu sem direito a reza, mas ganhou vida eterna na obra de Dalton Trevisan.

"Rei da Noite"

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