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Poder público não reconhece imposição

Mesmo diante de relatos que mostram o contrário, o "toque de recolher" não é reconhecido pelo poder público. Para a Secretaria de Segurança Pública, é fundamental que os boatos não sejam disseminados, e que a população denuncie.

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Problema nacional

Prática também ocorre em outras cidades do país

A prática do toque de recolher não é restrita a Curitiba. Em quatro meses, a imprensa noticiou dois casos em que moradores tiveram o direito de ir e vir cerceado pela criminalidade das comunidades que moram.

No último dia 18 um adolescente foi morto em Volta Redonda (RJ) por desrespeitar o toque de recolher. Segundo a polícia, minutos antes do crime moradores disseram que quatro homens armados em duas motos ordenaram que ninguém saísse de casa. Ademilson da Silva, 19 anos, não sabia da ordem. Traficantes da região estariam em guerra pelo controle de pontos de venda de drogas. As informações da PM dizem que o toque de recolher foi imposto como represália à morte de um adolescente de 17 anos, apontado como traficante, na última quarta-feira.

Já em Porto Seguro (BA), seis mortes ocorridas entre fevereiro e março têm levado a imposição do toque de recolher no distrito de Arraial d’Ajuda. Antes do último assassinato, uma testemunha relatou que homens usaram um alto-falante para avisar que "iria ter um tiroteio e que não era para ninguém sair de casa". Em menos de meia hora, o aviso se realizou, mesmo com diversas pessoas circulando pelo local. Dois jovens foram mortos. Para as autoridades policiais, a situação não passa de boato.

No início deste mês, cerca de 60 mil moradores de três bairros de Contagem, região metropolitana de Belo Horizonte (MG), ficaram nove dias sem ter acesso a escola, posto de saúde e comércio. Um ônibus chegou a ser incendiado, e o restante só circulou durante o dia. Mesmo com a presença da polícia, a população não arriscou sair de casa. Os moradores dizem que a motivação do toque de recolher foi a morte, seis dias antes, de dois homens ligados ao tráfico. (AP)

Está cada vez mais difícil para as autoridades de segurança pública negar um problema com o qual muitos curitibanos, da periferia ou do anel central, convivem diariamente. Os seis homens encapuzados com armas de calibre pesado que há duas semanas invadiram um bar no Jardim Kosmos, no bairro Pilarzinho, não deixaram apenas dois feridos e marcas de tiros no balcão e nas paredes. Deixaram também uma mensagem em alto e bom som: "Quem estiver na rua depois das 22 horas vai morrer". Para quem vive nessas regiões não interessa saber se a ameaça será ou não cumprida. Ninguém está disposto a pagar para ver. Em Curitiba, o toque de recolher é ditado não só por bandidos, mas em alguns casos também pela polícia.

A reportagem da Gazeta do Povo apurou que moradores de dez localidades sofrem com a imposição dos criminosos para não sair de casa depois de determinado horário. Os criminosos, geralmente, impõem a restrição, acima de tudo, por um motivo de força: querem mostrar que são eles que mandam na região. Esse tipo de situação é resultado de outros dois problemas sociais: a dependência química, já que o tráfico é que impõe o toque de recolher, e a ausência do Estado, o que dá certa liberdade aos criminosos.

O problema se espalha por pelo menos cinco bairros: Pilar­zinho, CIC, Cajuru, Uberaba e Sítio Cercado. No Pilarzinho, o "toque de recolher" começou no Jardim Kosmos e já ameaça o entorno. Versões não faltam para explicar o problema. Moradores atribuem as ameaças a homens do Primeiro Comando da Capital (PCC) vindos de Almirante Tamandaré, região metropolitana. Outros não têm dúvidas de que é gente que quer assumir o negócio do traficante Marcelo Stocco, preso em novembro.

A consequência do vácuo de poder no tráfico local foi a morte, há duas semanas, de três homens que saíram do Jardim Botânico para tentar dominar aquele ponto de drogas. Foi o início da regra velada que limita o ir e vir da população. Moradores da Vila Marta, da Vila Nori, do Morro da Formiga e do Tanguá passaram a ter hora marcada para chegar em casa. Para João, o toque de recolher é uma realidade sentida diariamente. Ele sai de casa na madrugada, por volta das 3 horas, para assumir o posto em uma empresa na região, bem no topo do morro. Ele e a mulher, Maria Isabel, 39 anos, temem pela segurança da família.

Dizem que "eles" sabem quem realmente precisa estar na rua durante o "toque de recolher", por isso não mexem com quem está a trabalho. Mas a família prefere não arriscar. Maria Isabel fica em casa, trancada, com os quatro filhos depois das 20 horas. Não são só eles: o resultado da política dos traficantes são ruas vazias e o povo atemorizado.

A irmã de Maria Isabel, Lúcia, 35 anos, mora no mesmo terreno e também mantém os mesmos cuidados. Os filhos mais velhos (ela tem cinco) não tinham o hábito de sair à noite, mas agora, nem pensar. "Tem escola aqui para cima e dizem que vão proibir o curso noturno". Desconsolada, a dona de casa lembra que nem na igreja dá para ir mais, porque o culto termina às 22h30. O pai dela, de 60 anos, é evangelizador na comunidade e já foi ameaçado. "Nunca tive medo, mas com o elemento surpresa é preciso ter cautela."

Só muda o endereço

O mesmo problema existe em outros pontos da cidade. Quem mora no Piratini ou na Moradias Doutor Ulysses, no Pinheirinho, na Vila Audi (Uberaba), ou na Vila Uberlândia (Cidade Industrial de Curitiba), tem alguma história para contar. Segundo um morador, uma parte da Vila Camargo, no Cajuru, tem imposição do toque de recolher da polícia. Às 21h, o comércio tem de estar fe­­cha­do, e os moradores, em casa.

No Jardim Kosmos, próximo do local onde ocorreu o triplo homicídio, uma professora da escola lembra que o controle dos jovens pela polícia também aumentou. Ela conta que grupos de adolescentes encontrados na rua depois das 22 horas passam por revista e são liberados caso não tenham nada. "Se tivessem feito isso antes, não teríamos chegado a essa situação", lamenta. Ela caminha seis quadras para chegar em casa, depois que a escola fecha às 22h30. "Tem aluno do noturno que quer sair às 21h30 para não arriscar."

Do outro lado da cidade, a rotina da diarista Circe também foi alterada desde que o "toque de recolher" foi imposto na parte do Sítio Cercado em que ela vive. Moradora do Osternack, há pouco menos de um mês ela tem vivido apavorada. A imposição do crime – personificado em homens de motos ou carro que gritam pela rua para que "as pessoas se recolham em casa" – lhe diz que não pode demorar no trabalho e tira o sono enquanto o filho mais velho, de 16 anos, não chega da escola. Ele estuda perto da Vila Tecnológica, ponto mais nevrálgico da imposição. O jovem precisa caminhar a pé oito quadras para chegar em casa. "Quando tem dinheiro, vem de ônibus", diz a mãe.

Mais uma vez, mortes envolvendo pequenos e médios traficantes da região motivaram a onda de violência. No dia 26 de março, um suposto "toque de recolher" deixou em polvorosa pais e alunos de quatro escolas do Osternack, que não sabiam se deviam respeitar ou não a criminalidade depois da morte de um traficante. Mesmo com a negativa da polícia e de representantes do conselho de segurança do bairro, a exigência de recolhimento a partir das 20 horas continuou sendo ouvida.

Na última semana, Circe teve de pedir para o marido buscá-la no emprego porque táxi não entra na região. Quando vem de ônibus, liga para o porteiro e pede para abrir o portão. "O lugar parece um bairro-fantasma, como a gente vê nos filmes". Antes visitava a filha e a neta, que moram há algumas quadras de casa, quando chegava do trabalho, ou então frequentava a igreja. Ago­ra, essas coisas ficaram no passado.

* Todos os nomes são fictícios para manter a integridade das pessoas.

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