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Protesto contra a ditadura militar realizado em São Paulo, em 1968 | Arquivo/Agência Estado
Protesto contra a ditadura militar realizado em São Paulo, em 1968| Foto: Arquivo/Agência Estado

Sessões de espancamento acompanhadas por métodos para prolongar o sofrimento da vítima, um cronograma de ataques e até um jacaré colocado em celas. No regime militar, as práticas de torturas receberam um tratamento “científico” por parte dos autores dos crimes, segundo relatos contidos em documentos coletados pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha em Genebra.

O jornal O Estado de S. Paulo teve acesso pela primeira vez aos arquivos do Comitê Internacional da Cruz Vermelha sobre o Brasil em sua nova fase de abertura de documentos. Nos 17 mil informes registrados entre 1965 e 1975 guardados em Genebra, a entidade manteve dezenas de documentos sobre o período mais sombrio da ditadura no Brasil.

“(...) os cuidados médicos são constantes, para verificar o grau de resistência do torturado e evitar alguma marca permanente (loucura, fraturas, cicatrizes). Mesmo assim, em vários casos o limite foi ultrapassado e registram-se desequilíbrios nervosos, loucura, crises cardíacas, surdez”,

No auge da repressão no Brasil, nos anos 1970, o comitê atuou para tentar garantir os direitos humanos dos prisioneiros. Esses relatos, segundo a Cruz Vermelha, são uma evidência do caráter institucional que as violações tiveram durante o período de maior brutalidade da ditadura no País. A entidade jamais foi autorizada a visitar os centros de torturas.

Os informes não puderam ser consultados pela Comissão Nacional da Verdade, que concluiu seus trabalhos em dezembro de 2014, antes de a entidade ter aberto seus arquivos.

‘Método’

Em 21 de janeiro de 1970, o comitê apresentou documentos detalhados das práticas contra prisioneiros políticos, escritos em português por ex-prisioneiros ou fontes que aceitaram, de forma anônima, repassar à entidade informações.

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Em praticamente todos eles, é o caráter organizado e “científico” da tortura que é destacado. “A grande maioria dos presos passa por um processo de torturas físicas, morais e psicológicas. De acordo com a gravidade do caso ou a pressa em se obter informações, são colocados em cubículo isolados, em celas isoladas ou em celas coletivas (em ordem decrescente de importância)”, diz o relato.

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A Cruz Vermelha obteve de forma clandestina relatos anônimos de prisioneiros sobre o que ocorria nas prisões do Brasil e que, por 40 anos, foram mantidos em total sigilo. Um dos pacotes veio de Jean Marc von der Weid, detido no Rio. O “suplício” vivido por Weid, ex-presidente da UNE, em Ilha das Flores, é contado com detalhes. Depois de choques elétricos na cabeça, espancamento na cabeça, pendurado em um pau de arara, simulacro de afogamentos e golpes que levaram a uma surdez parcial, ele foi “jogado nu” em um “cubículo imundo”.

Após um “descanso” de 24 horas, as torturas foram retomadas. “Ficou jogado numa cela, nu, durante oito dias e incomunicável durante 25 dias (...) Após mais de um mês, ficou isolado dez dias no banheiro, e foi levado ao 1.º distrito naval onde aplicaram novos choques. (...) Aconselhada por médicos, sua família pediu que fosse feito um exame neurológico completo. A resposta a este pedido foi um novo isolamento completo durante 17 dias, 6 dos quais no banheiro”.

Um ano depois, já exilado na Suíça, ele diria ao CICV que o governo teria perdido o controle da atitude de suas forças de ordem e que cada uma das polícias “age como bem entende”. Ele também alertou para o centro de detenção do aeroporto do Galeão.

A estudante Marijane Vieira Lisboa, na época com 22 anos, é também mencionada. “Foi espancada, sofrendo choques elétricos que lhe causaram desmaio prolongado a ponto de assustar os torturadores, que se viram forçados a interromper as aplicações de choques para recuperar as batidas do coração e a pulsação: ficou isolada durante quinze dias”.

No Recife, Elenaldo Teixeira e um estudante apenas identificado como Luis “foram torturados durante 24 horas, até a beira da morte”.

“O método aplicado é o científico. Baseia-se na aplicação dosada de um sofrimento atroz dentro do limite exato da resistência humana. Para tanto, os cuidados médicos são constantes, para verificar o grau de resistência do torturado e evitar alguma marca permanente (loucura, fraturas, cicatrizes). Mesmo assim, em vários casos o limite foi ultrapassado e registram-se desequilíbrios nervosos, loucura, crises cardíacas, surdez”, descreve. “Trata-se de uma luta para destruir - não a resistência física - mas a resistência moral do preso. A pressão física é apenas um veículo para a pressão moral. Ao mesmo tempo em que se submete o preso a torturas, acena-se com o fim de tudo, se (o detido) falar.”

Sequência

O ato de torturar não ocorria, segundo os documentos, de forma aleatória. “A tortura começa sempre com um espancamento. A fase seguinte é a do choque elétrico. “O aparelho utilizado é um telefone de campanha, de magneto.” O choque é aplicado simultaneamente ao “pau de arara”. Num outro relato sobre os “Tipos de tortura preferidos”, o documento aponta a “colocação de animais, como cobras, ratos e até um jacaré, na cela dos presos”.

Entre os torturadores, os relatos dos documentos da Cruz Vermelha apontam nomes citados pela Comissão Nacional da Verdade. Um deles é o Tenente Coutinho, “médico que controla cientificamente a tortura”.

Nos informes da Comissão da Verdade, trata-se de José Lino Coutinho da França Neto. Ele prestou serviço militar na unidade da Marinha na Ilha das Flores (RJ), em 1969 e 1970, e teve participação em casos de tortura. Outro é Miguel Laginestra, apontado como “torturador frio, mas que prefere que os outros façam o serviço”.

Documentos são ‘descoberta arqueológica’

Os documentos revelados do Comitê Internacional da Cruz Vermelha comprovam que as violações de direitos humanos eram uma “política de estado”, diz o ex-coordenador da Comissão da Verdade Paulo Sérgio Pinheiro, antigo integrante do conselho de assessores internacionais do comitê. “Os documentos comprovam em todas as suas linhas os métodos de tortura empregados pela ditadura e parecem uma continuação e um detalhamento do que está no relatório da Comissão Nacional da Verdade”, disse Pinheiro.

Para ele, a grande contribuição do comitê é deixar claro que repressão, tortura, desaparecimentos, mortes ou execuções eram uma política de Estado, “numa cadeia de comando que ia dos generais-presidentes até o torturador dando choques elétricos”.

Na avaliação do ex-coordenador da comissão, os documentos “têm a qualidade das descobertas arqueológicas inesperadas que, de repente, trazem para o presente a voz das vítimas e a desumanidade, a brutalidade dos governos militares e dos seus torturadores, muita vez lotados no gabinete do ministro do Exército”.

Debate

Paulo Sérgio Pinheiro acredita ainda que a publicação dessa nova rodada de documentos da Cruz Vermelha poderá retomar o debate do relatório da Comissão da Verdade, publicado em dezembro de 2014.

O brasileiro confirma que o comitê foi “inflexível” e não liberou, em 2013 e 2014, os documentos que ainda estavam sob sigilo em Genebra.

“De certa maneira, foi até melhor para que possamos reativar no presente o legado da ditadura e a obrigação do governo de impedir a continuidade da tortura, das chacinas, as execuções sumárias da Polícia Militar, a impunidade”, afirma o ex-coordenador da Comissão Nacional da Verdade.

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