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Fenômeno econômico e social, além de inspiração para filmes e novelas recentes, a nova classe média brasileira incluiu, nos últimos dez anos, 35 milhões de pessoas. Apesar de, agora, ter condições para comprar uma tevê de plasma e financiar o primeiro carro zero, os 104 milhões de brasileiros que ganham entre R$ 291 e R$ 1.019 (53% da população) não sairão da condição de subjugação social. É o que defende o sociólogo Jessé Souza, especialista em classes sociais.

Para Souza, a ascensão em uma sociedade como a brasileira, em que a "classe de alguém explica sua renda e não o contrário", só ocorre de forma plena quando leva consigo o chamado "capital cultural". O debate brasileiro concentrado na renda, diz o professor, é o fruto de uma sociedade "superficial, perversa e injusta".

Por que esse interesse recente e intenso sobre a nova classe média brasileira?

Porque é a maior novidade social, econômica e política do Brasil. Representa uma penetração e um aprofundamento do capitalismo brasileiro – para o bem e para o mal – tão importante quanto as reformas de Getúlio Vargas nos anos 30 e 40 e a criação de uma moderna classe média nos anos 50 e 60.

Quem faz parte da atual classe média brasileira?

A classe média "verdadeira" no Brasil não é mais do que 15% da população. É o pessoal do "privilégio", porque se apropria de um capital impessoal indispensável para a reprodução do mercado capitalista e do Estado, que é o "capital cultural", ou seja, o "conhecimento" que é indispensável para o capitalismo em todas as dimensões e esferas sociais. Falamos aqui de capital cultural "valorizado", aquele conhecimento técnico ou literário que garante prestígio e altos salários. O pressuposto do acesso a este tipo de capital é construído na esfera familiar – a classe social é reproduzida nas "famílias de classe" – com os estímulos adequados a pensamento abstrato, concentração na escola, prêmios dirigidos à inteligência etc.

Quantas classes sociais existem no Brasil?

Basicamente são quatro. Duas, bem pequenas em número e "privilegiadas" – as classes alta e média; e duas bem maiores e numerosas – a classe trabalhadora, com suas frações nova e velha, e a que chamo provocativamente de "ralé", que ainda representa cerca de 30% dos brasileiros, os explorados. Não é a renda que define a classe social como no pobre debate público brasileiro atual se costumou a perceber. A renda não é definidora por que é a situação de classe de alguém que explica sua renda e não o contrário. Além do capital econômico, que é mais óbvio, existem capitais tão importantes como o capital cultural, que formam as classes de modo invisível à consciência cotidiana. Na classe alta, o capital econômico é majoritário sob a forma de "direitos de propriedade", mas alguma forma de capital cultural é indispensável, já que o dinheiro deve parecer como emanando naturalmente de qualidades "inatas" do sujeito. Na classe média, o decisivo é o capital cultural, sob a forma de incorporação de conhecimento útil e valorizado de todo tipo. Mas a incorporação desse tipo exclusivo de conhecimento exige algum capital econômico, por exemplo, para comprar o tempo livre dos filhos para o estudo, que é a forma mais típica de a classe média reproduzir seus privilégios. É a luta de classes típica do Brasil moderno. O debate brasileiro concentrado na renda é o debate de uma sociedade superficial, perversa e injusta, e ele abrange tanto o governo quanto a oposição.

Por que a desigualdade social é tão abismal no Brasil?

As causas da desigualdade são muitas, mas elas refletem, antes de tudo, o nível de desenvolvimento da consciência moral de uma sociedade. E a nossa sociedade foi e ainda é infantilizada por falsos problemas e por ideologias conservadoras de toda espécie que ainda nos dominam praticamente sem discurso alternativo. As mudanças sociais devem partir antes de tudo da sociedade, por que não existe estado "progressista" com sociedade "conservadora". O problema é que o nível de esclarecimento de nosso debate público é pífio.

O "jeitinho brasileiro" deixou de ser sinônimo de malandragem. O escritor Francisco de Oliveira diz que o jeitinho é um atributo das classes dominantes brasileiras que se transmitiu às classes dominadas. O senhor concorda?

Todo este tema do "jeitinho brasileiro", seja em Roberto DaMatta, que o cunhou, seja em qualquer outro, é não apenas uma ideologia frágil e superficial sem qualquer apoio na realidade mas, também, extremamente irritante porque quem a defende "tira onda" de crítico quando, na verdade, defende as ideias mais conservadoras que existem por ai. Ela é frágil e superficial por que imagina um Brasil pré-moderno, cuja hierarquia social se articularia por "relações pessoais", como nas sociedades tradicionais do passado, e não a partir dos capitais "impessoais", econômico e cultural, típico das sociedades modernas. O capital social de relações pessoais, ou seja, o "jeitinho" ou o famoso "quem indica", é uma variável dependente dos capitais econômico e cultural e não o contrário.

Você leva muito em consideração o termo capital cultural. O que é isso?

O capital cultural é um conceito da sociologia de Pierre Bourdieu. Não são apenas os títulos escolares, mas também todos os pressupostos afetivos e emocionais que permitem que possamos "aprender" alguma coisa. Esse ponto é o mais fundamental porque não refletimos nunca sobre isso e imaginamos sempre que as pessoas de todas as classes possuem os mesmos pressupostos. Imaginamos uma espécie de ser humano universal com capacidades e habilidades comuns. Isso não é verdade. Um bom exemplo que mostra esse engano é a "capacidade de concentração". Em nossas pesquisas, os mais pobres entre nós tinham escola, mas fitavam a lousa horas a fio "sem compreender e sem aprender" o que estava sendo dito. É que capacidade de concentração não é um dado natural, como imaginamos, assim como ter dois braços e duas pernas, mas é um "capital" (cultural, no caso) aprendido e incorporado, por algumas classes, que tiveram os estímulos adequados na socialização familiar. Só que ele é decisivo para o sucesso escolar e depois no mercado de trabalho. Ou seja, ajuda a pré-decidir o que chamamos de "sucesso na vida".

Ele deveria fazer parte desse tipo de distinção de classes?

Não apenas a diferenciação do capital cultural ajuda a criar classes distintas, como também o capital cultural é usado constantemente como mecanismo de distinção social. Assim, o gosto "nobre" legitima quem o possui a desprezar as classes com gosto supostamente vulgares. Esse tipo de preconceito e solidariedade fundado no gosto é uma forma moderna de consciência e solidariedade de classe que ajuda a reproduzir todo tipo de privilégio injusto.

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