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| Foto: Vaterci Santos/Gazeta do Povo

Em dez anos, o crescimento chegou a áreas no Brasil nas quais não havia alcançado. Cidades no interior e nas regiões Norte e Nordeste viram aumentar sua renda e a capacidade de negócios. Com os recursos, no entanto, chegou a violência e a incapacidade do estado de lidar com a migração das organizações criminosas.

Mortes migram das capitais para as zonas metropolitanas

No último final de semana, quatro pessoas foram assassinadas em Simões Filho, cidade de pouco mais de 100 mil habitantes na zona metropolitana de Salvador. Em Ananindeua (PA), próxima a Belém, uma jovem de 19 anos foi encontrada morta em casa e a polícia ainda investiga o assassinato de sete pessoas no mesmo dia, registrados no final de abril. As duas cidades, periferia das capitais, são os únicos municípios brasileiros em que as taxas de mortalidade por armas de fogo, acima de 100 por 100 mil habitantes, equivalem às de zonas de guerra. O Mapa da Violência 2015, mostra que as zonas metropolitanas das capitais, sem as mesmas condições de manter os aparatos de segurança das vizinhas mais ricas, estão herdando os crimes e as mortes.

Dentre as 20 cidades com maiores taxas de assassinatos por armas de fogo, 14 estão em zonas metropolitanas das capitais e uma é a própria capital, Maceió. Dessas, apenas duas não estão em estados do Norte ou Nordeste - Serra, no Espírito Santo, que se mantém na lista desde 2007, ano do primeiro mapa por municípios, e Campina Grande do Sul, no Paraná. Entre as outras, há dois polos de crescimento, uma cidade de fronteira e duas cidades turísticas no litoral.

De acordo com o autor do estudo, a violência homicida deixou os grandes centros, como Rio e São Paulo, e migrou para centros menores, onde a estrutura de segurança e social é menor. A falta de Estado se reflete no crescimento das mortes em cidades das periferias das capitais, em polos de desenvolvimento no interior dos estados, no chamado Arco do Desmatamento Amazônico - onde as atividades ilegais chegam muito antes do Estado – e também em regiões que chama de turismo predatório, especialmente o litoral, onde a população pode triplicar em um final de semana, sem a correspondente estrutura de Estado para acompanhar. “Onde aparecem novos atrativos aparece a criminalidade, mas não aparece o Estado para enfrentá-la. Esses municípios enfrentam uma onda de crime organizado totalmente desaparelhados”, explicou Waiselfisz ao Estado. “Em alguns casos mesmo os interesses econômicos locais coincidem com os interesses econômicos da violência. As estruturas não são criminosas, mas vivem delas. Tratam de ocultá-las porque se beneficiam delas.”

Isso explica, por exemplo, porque apenas cinco capitais estão entre as cem com maiores taxas de assassinatos por armas de fogo. São elas Maceió (AL), João Pessoa (PB) e Fortaleza, capitais de estados marcados pelas dificuldades econômicas, e Vitória (ES) e Recife (PE), que são historicamente regiões com altos índices de criminalidade.

Metodologia

O levantamento de dados, feito com base em dados do Sistema de Informação de Mortalidade (SIM) do Ministério da Saúde, leva em conta a média de mortes ocasionadas por armas de fogo e da população dos municípios nos últimos três anos, para evitar distorções em cidades com população muito pequena. Com isso, pode-se ter certeza que a taxa de mortalidade apresentada ali não é resultado de um ano atípico, onde teriam ocorrido mais mortes do que o normal.

O Mapa da Violência 2015 – Mortes Matadas por Armas de Fogo, estudo do sociólogo Julio Jacobo Waiselfisz editado pela Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco) mostra que, enquanto São Paulo e Rio de Janeiro, centros tradicionais de violência, tiveram quedas expressivas nos assassinatos entre 2002 e 2012, estados pobres como Alagoas e Maranhão passaram a enfrentar epidemias crescentes de homicídios.

“A maneira de se conter uma epidemia é primeiro criar barreiras para que ela não se alastre, e depois combatê-la. Na virada do século o crescimento econômico começa a migrar para o interior, para fora dos grandes polos como São Paulo e Rio de Janeiro, e a violência vai também. Mas ela chega muito antes das estruturas de estado. O estado não está preparado para enfrentá-la”, analisa Waiselfisz.

Nos anos analisados pelo estudo São Paulo teve uma queda de 62,2% nos assassinatos por armas de fogo. No Rio de Janeiro, a redução foi de 54,9%. Mas apenas oito estados tiveram queda, sendo que no Espírito Santo foi de apenas 1,3%. Na outra ponta, Amazonas, Ceará e Maranhão tiveram crescimentos assustadores, ultrapassando os 200%. Alagoas, que já estava entre os mais violentos, teve um crescimento de 119% nos homicídios por armas de fogo e tem hoje a mais alta taxa - 55 por 100 mil habitantes, idêntica a da Venezuela, o país mais violento do mundo entre os que não estão enfrentando algum tipo de conflito armado.

Novas estruturas criminais

A migração do crime, explica Waiselfisz, não é uma migração física, de bandidos mudando de estado, mas a da criação de novas estruturas criminais fora dos eixos centrais. O sociólogo cita como exemplo a transferência, em 2003, de Fernandinho Beira Mar para um presídio em Alagoas. Com pouca segurança, o traficante carioca ajudou a montar uma estrutura criminosa do tráfico que atua hoje no estado. “Foi ali que iniciou o crescimento do crime na região”, afirma Waiselfisz.

Do outro lado, a criação em 2000 do primeiro plano de segurança pública, acompanhado de fundo com recursos federais que foram repassados aos estados que enfrentavam, na época, os maiores índices de violência, ajudou a baixar os níveis em São Paulo, Rio e Pernambuco, que estava então nos primeiros lugares. O autor do estudo lembra os investimentos feitos em São Paulo em tecnologia, reformas penitenciárias, formação de policiais e inclusive no programa de Escolas Abertas. No Rio de Janeiro, lembra, a queda começou em 2004, quatro antes da primeira UPP, também reflexo desse investimento. “Levou-se recursos federais para os estados onde havia mais violência e se elevou a capacidade de resposta, além do surgimento de poderosas entidades civis que atuaram fortemente para pressionar o governo”, explica.

Enquanto isso, Alagoas enfrentava uma greve de policiais por sete meses. No Maranhão, o sistema penitenciário se desestruturava completamente. Com o crescimento econômico acompanhado da falta de Estado, a violência explodiu.

Waiselfisz lembra, ainda, que uma das medidas de maior resultado no combate aos assassinatos por armas de fogo, a campanha de desarmamento, foi praticamente deixada de lado nos últimos anos. “No primeiro ano, foram recolhidas 450 mil armas Nos anos seguintes, um terço disso. São 16 milhões de armas circulando no Brasil, a metade irregulares. O desarmamento pode não ser tudo, mas é uma condição necessária para a pacificação”, afirma.

Jovem negro é principal vítima de morte por arma de fogo no país

Aos 19 anos, os jovens brasileiros estão em perigo. Se forem negros e homens, o risco aumenta. É esse o perfil da maior parte das vítimas de homicídios por arma de fogo no Brasil. Apesar do ritmo de crescimento da violência ter se reduzido na última década, o extermínio de jovens - especialmente negros - ainda ameaça o futuro do país.

O estudo Mapa da Violência 2015, mostra que todos os anos morrem no Brasil 285% mais jovens de 15 a 29 anos do que pessoas em outras faixas etárias e a chamada vitimização juvenil se repete em todos os estados e todas as capitais do país. Em Vitória, no Espírito Santo, morrem 587% mais jovens do que a população em geral. Em Maceió (AL), a capital mais violenta do País, 489% a mais. E mesmo em Florianópolis (SC), que tem uma das menores taxas de homicídios no Brasil, ainda morrem 481% mais jovens.

O relatório mostra que a taxa de homicídios começa crescer aos 16 anos, quando pula de 19,7 por 100 mil habitantes para 37,1. Aos 17 já está em 55,6 , chega a 62,9 por 100 mil aos 19 anos e se mantém acima dos 50 até os 24 anos. São números que competem, por exemplo, com as taxas de mortalidade da Venezuela - 55 por 100 mil habitantes - país hoje considerado o mais violento do mundo sem estar em guerra. “O Brasil, sem conflitos religiosos ou étnicos, de cor ou de raça, sem disputas territoriais ou de fronteiras, sem guerra civil ou enfrentamentos políticos levados ao plano das armas, consegue vitimar mais cidadãos via armas de fogo do que muitos dos conflitos contemporâneos”, diz o estudo.

Toda essa violência é concentrada principalmente nos homens. A taxa de mortalidade entre as mulheres é de apenas 2,6 por 100 mil e se mantém em torno de três em 21 das 27 unidades da federação, só aumentando drasticamente em Alagoas, estado mais violento do país, quando chega a 6,1 por 100 mil. Do outro lado, a taxa nacional para mortes masculinas é de 42 por 100 mil - entre os jovens, 95% dos assassinatos são de meninos - e chega a 107 por 100 mil em Alagoas.

Expectativa de vida

A violência atinge diretamente os homens reduz significativamente a expectativa de vida dos brasileiros. A diferença entre homens e mulheres chega a sete anos, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística divulgados no ano passado, em que a média das mulheres é de 78,6 anos e a dos homens, 71,3. Um estudo da Fundação Bill e Melinda Gates que estuda as causas da mortalidade em 188 países mostra que no Brasil a violência é a segunda causa de mortalidade, enquanto no resto do mundo é apenas a 22º.

Os números são ainda piores e ganham características de extermínio quando se fala da população negra. O Mapa da Violência mostra que, enquanto as taxas de homicídios caíram 18,7% entre 2002 e 2012, entre os negros cresceram 14,1%. Com essa diferença no ritmo de crescimento, a vitimização da população negra dobrou em 10 anos. Era de 72,5% em 2003, passou a 142% em 2012”, diz o relatório.

Waiselfisz aponta como uma das causas dessa crescente vitimização negra duas questões centrais: a privatização dos serviços de segurança e o jogo político-eleitoral.

“A segurança se transformou em um problema político por duas vias. A partir da década de 90 houve uma crescente privatização das atribuições do Estado, inclusive da segurança. Quem pode pagar, contrata os meios possíveis, e quem pode pagar é a população branca”, explica. “Em outro lado, a violência entrou na pauta das eleições. A cobertura da segurança pública se distribui de forma desigual. O Estado coloca toda a sua estrutura de segurança nos bairros onde um crime tem mais repercussão, que são, mais uma vez, as regiões mais abastadas, onde vive de modo majoritário a população branca”.

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