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Especialistas criticam demora na vacinação de população de cidades vizinhas às áreas onde foram verificados casos de febre amarela em macacos e humanos. | André Borges/Agência Brasília
Especialistas criticam demora na vacinação de população de cidades vizinhas às áreas onde foram verificados casos de febre amarela em macacos e humanos.| Foto: André Borges/Agência Brasília

A casa deles é a copa das árvores que ficam em florestas, inclusive as urbanas, como a da Tijuca. Mas isso não impede que cheguem a quintais, jardins e varandas de residências localizadas perto de matas. O risco de ser picado pelos transmissores da febre amarela silvestre – os mosquitos das espécies dos gêneros Haemagogus e Sabethes – não existe só para quem frequenta áreas verdes, explica o infectologista e especialista em entomologia médica Aloísio Falqueto, que, desde janeiro, investiga o surto da doença em Minas Gerais e no Espírito Santo.

Professor do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Espírito Santo, Falqueto estuda há 39 anos insetos que transmitem doenças. Ele diz que o atual surto no país tem mudado o que se sabe sobre os mosquitos da febre amarela silvestre. O especialista destaca, porém, que esses vetores não se afastam muito das florestas. Os Haemagogus e Sabethes não aparecem em praças e árvores de rua, por exemplo. Tampouco voam longe, a ponto de alcançarem a maioria dos apartamentos – a não ser os imóveis contíguos a florestas como a da Tijuca e a do Maciço da Pedra Branca.

“Não há evidência de que os Sabethes voem mais que 100 metros dentro de uma mata. Nela, são comuns. Vivem também nas bordas, mas não entram na casa de alguém ou num apartamento, a não ser que haja uma varanda encostada nas árvores da mata. Mesmo assim, não ficam por lá, como o Aedes aegypti. No entanto, podem picar uma pessoa e sair”, afirma o infectologista.

Pesquisador do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), Ricardo Lourenço, um dos maiores especialistas do país em insetos transmissores de doenças, diz que cidades com matas urbanas, como o Rio de Janeiro, sempre tiveram esses mosquitos silvestres. “Imagine casas de Santa Teresa próximas à Floresta da Tijuca. Muitos desses imóveis ocupam encostas e ficam no mesmo nível das copas de várias árvores, o que cria condições para que mosquitos silvestres entrem pelas janelas ou varandas. Mas não existe motivo para pânico porque, para a febre amarela silvestre ser transmitida, os mosquitos precisam estar com uma carga viral considerável, e não há qualquer indício nesse sentido. A população não tem motivo para ficar alarmada”, afirma Lourenço.

Mesma doença

A diferença entre a febre amarela urbana e a silvestre é justamente o mosquito transmissor. O vírus é o mesmo; a doença é uma só. Mas a do tipo urbano é transmitida pelo Aedes aegypti, que infesta cidades e cuja “vítima” preferida é o ser humano. Abundantes em matas, as espécies silvestres foram menos estudadas que o Aedes, mas sabe-se que a maioria não circula por longas distâncias. Embora estudos mostrem que uma das espécies de Haemagogus pode voar por quilômetros, Aloísio Falqueto explica que essas pesquisas foram realizadas em pontos da Amazônia com condições ambientais muito diferentes das encontradas na Região Sudeste. “Esse tipo de inseto vive em um sistema ecológico complexo. Depende das árvores para viver. Porém, a maior parte do que se sabe sobre ele vem de estudos da Amazônia e da América Central. Seus hábitos na Mata Atlântica ainda são relativamente pouco conhecidos”, afirma o professor da Universidade Federal do Espírito Santo.

“Desde quando mosquito respeita mapa, divisa de estado ou segue por rodovia? Essa história de bloqueio de fronteiras é tão ultrapassada quanto o Tratado de Tordesilhas”

Aloísio Falqueto, infectologista e especialista em entomologia médica da Universidade Federal do Espírito Santo

Não se sabe, por exemplo, quantas vezes a fêmea (só ela se alimenta de sangue) pode picar uma pessoa. Mas é sabido que, como descem das copas das árvores, atacam principalmente a cabeça e o tronco. E o fazem principalmente entre meio-dia e 15 horas, embora possam se alimentar em todo o período de incidência de luz natural, inclusive no anoitecer, explica Ricardo Lourenço: “Os macacos são os alvos favoritos dos mosquitos silvestres. Isso acontece porque, como os insetos, eles vivem nas copas das árvores. Os primatas sobem nos troncos para períodos de repouso. Catam uns aos outros e adormecem no início da tarde, quando os Haemagogus e Sabethes estão em seu horário de maior atividade. Ou seja, são atacados facilmente”.

Aloísio Falqueto e outros pesquisadores da Universidade Federal do Espírito Santo já coletaram 6,3 mil mosquitos em quatro cidades do Espírito Santo (Venda Nova, Pancas, Santa Teresa e Cariacica), escolhidas por representarem diferentes ambientes nos quais a febre amarela vem se manifestando. Esses insetos são analisados pela equipe de Ricardo Lourenço, na Fiocruz. “A meta é investigar quais são as espécies dos mosquitos e o nível de infecção pelo vírus. O que mais nos surpreendeu até agora foi descobrir que 80% desses insetos são Sabethes. Pensávamos que os Haemagogus eram os principais transmissores da febre amarela silvestre. Mas, na Mata Atlântica, não é isso o que estamos vendo. Esse surto tem realmente surpreendido”, afirma Falqueto.

O Sabethes depende mais da floresta e existe em toda a Mata Atlântica. “Praças não têm Sabethes, mas fragmentos de mata sim. Eles são bem comuns na Mata Atlântica. E não apenas nela, mas nas plantações de eucaliptos, por exemplo. Essas plantações existem em toda parte”, diz o professor da Universidade Federal do Espírito Santo.

Alastramento

Um dos mais experientes estudiosos de mosquitos transmissores de doenças do Brasil, Aloísio Falqueto não tem a menor dúvida de que a febre amarela silvestre se alastrará pelas florestas do estado do Rio e chegará a São Paulo: “Estamos convencidos de que o surto continuará se alastrando pelas matas e vai chegar, em um período de quatro a seis semanas, às florestas de São Paulo. Passará pelas serras do estado do Rio, pelas matas de cidades como Petrópolis e Teresópolis. Não foi surpresa alguma para nós a doença ter chegado a Casimiro de Abreu. Essa doença não segue mapas, segue matas. Avisamos que fazer um bloqueio com vacina apenas nas cidades que fazem limite com Minas Gerais e Espírito Santo não bastava. O vírus segue pelas áreas de montanhas e se espalha pelas florestas. Foi isso o que alertamos e foi isso que aconteceu. A febre amarela segue os caminhos da floresta, isso é sabido”, avisa.

Falqueto diz que não há justificativa para a população de Casimiro de Abreu e cidades vizinhas não ter sido vacinada antes: “Fico revoltado de terem deixado acontecer uma coisa dessas. Desde quando mosquito respeita mapa, divisa de estado ou segue por rodovia? Essa história de bloqueio de fronteiras é tão ultrapassada quanto o Tratado de Tordesilhas”, reclama.

Ele observa que bloqueios pontuais, como os que o estado do Rio fez em janeiro e fevereiro, são insuficientes: “Esse tipo de ação não funciona, como ficou provado com os casos de infecção de seres humanos, porque não foi baseado em conhecimento. A doença se espalha como sempre fez, pelos corredores de florestas. Avisamos isso em reuniões técnicas. Achamos que esse surto vai acabar somente com a chegada da estação mais fria, como sempre aconteceu com a febre amarela”.

Ricardo Lourenço destaca que o vírus se espalhou rapidamente por Minas Gerais e pelo Espírito Santo: “Pesquisamos os mosquitos em toda a região de serras do estado do Rio em novembro e dezembro do ano passado, e, na época, não vimos qualquer indício de febre amarela. Nosso grupo se dedica mais à febre amarela do que a qualquer outra doença. O que realmente nos preocupa é o risco de a febre amarela se reurbanizar, isso é, voltar a ser transmitida pelo Aedes aegypti, que infesta as cidades e tem o ser humano como alvo. Isso seria uma tragédia. Hoje, o risco de a febre amarela se urbanizar é enorme”.

História

Originária da África, a doença chegou ao Brasil no século 18. Veio com o Aedes aegypti, seu principal transmissor, e causou epidemias que mataram milhares de pessoas. Com as campanhas de erradicação intensas do início do século 20, a febre amarela foi controlada no Brasil em 1942. O último registro foi no Acre. Porém, nos anos 1930, no Vale do Cannã, no Espírito Santo, descobriu-se que ela tinha um ciclo silvestre. Esse ciclo, que se dissemina com intensidade muito menor, permaneceu nas florestas brasileiras causando surtos pequenos e pontuais, principalmente na Amazônia.

A partir dos anos 2000, a doença começou se espalhar para o Leste e o Sul com maior intensidade. E, no fim de 2016, eclodiu em seres humanos, em Minas Gerais, no pior surto de febre amarela silvestre do Brasil. Segundo o Ministério da Saúde, há 1.558 casos notificados, a maioria em Minas Gerais e no Espírito Santo.

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