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Região da Saldanha Marinho em que a “morte” era a ocupação principal: hoje, bandeirinhas enfeitam a rua, que aos poucos sai da penumbra | Marcelo Andrade/Gazeta do Povo
Região da Saldanha Marinho em que a “morte” era a ocupação principal: hoje, bandeirinhas enfeitam a rua, que aos poucos sai da penumbra| Foto: Marcelo Andrade/Gazeta do Povo

Riqueza

Funerária de luxo era também o palacete luxuoso da família Falce no começo do século 20

Seja profissão maldita ou não, ter açougue ou funerária era algo que dava dinheiro nos idos dos anos 1920. E como Pedro Falce, o proprietário da funerária da Saldanha Marinho, era um imigrante italiano de bom gosto, o que ele deixou para aquela rua foi um verdadeiro exemplar arquitetônico, hoje Unidade de Interesse de Preservação de Curitiba.

Um litígio familiar impede que o prédio seja restaurado com a venda de potencial construtivo. Contudo, para que as informações não se percam ou se mantenham apenas com os herdeiros de Falce, os alunos de arquitetura da Universidade Tecnológica Federal do Paraná resolveram refazer toda a planta arquitetônica e resgatar as informações históricas. O que se descobriu é uma parte da Curitiba que pouco se conhece.

De luxo

A funerária foi a primeira de luxo que a capital paranaense teve. O prédio da esquina das Saldanha Marinho com a Rua do Rosário abrigava a funerária no térreo e, em cima, a moradia da família Falce. Os outros três prédios grudados ao principal eram depósito de caixões e cocheira dos cavalos e carruagens dos cortejos fúnebres. "É compreensível porque ninguém queria ter comércio ou morar ali", comenta a estudante Gabriela Valeixo, uma das que refez a planta e a maquete do imóvel. Gabriela e seus colegas tiveram a oportunidade de conversar com o homem que casou com a neta de Pedro Falce, o senhor Adriano Bonaldi. Um casamento apurado para uma época em que se acreditava ser de má sorte casar com descendentes de donos de funerárias. (PM)

A equipe

Os alunos da UTFPR que fizeram a pesquisa na Saldanha Marinho são Amanda Correa, Ana Carolina do Nascimento, Barbara Baena, Carolyne Couston, Cira Caixeta, Gabriela Valeixo, Gihad Khouri, Juliana Hashizumi, Juliana de Almeida, Marianne Basilio, Mario Neto, Paula Alves, Pedro Junger, Pedro Klein, Samantha Neves e Tamara da Luz.

O prédio

da funerária de luxo, hoje bastante deteriorado, ainda tem as cariátides (estátuas) que chegaram a ser revestidas de ouro. O salão principal guarda resquícios das pinturas ornamentais das paredes, que só existiam em casas de milionários. O edifício tem três andares e uma cobertura com um pequeno terraço, parecido com os prédios franceses.

Em um levantamento sobre os prédios históricos da Rua Saldanha Marinho, em Curitiba, alunos de arquitetura da Universidade Tecnológica Federal do Paraná podem ter chegado a uma resposta que até hoje nem a prefeitura e nem pesquisadores conseguiram dar: por que uma quadra em uma região central – e com o metro quadrado tão caro – da capital paranaense é frequentada apenas por pombas, drogados e aqueles que ali querem aliviar as calças? O descaso de hoje com os poucos metros do início da Saldanha Marinho teria explicação histórica: uma funerária que existiu na esquina e vários açougues que se estabeleceram por ali. Os dois tipos de comércio, no início do século 20, eram temidos por lidar com a morte. Por isso teria afastado a população da região que, culturalmente e por gerações, acabou se distanciando da região. "Ser açougueiro era uma profissão maldita. Tanto é que o dono do açougue que ficava aos fundos da funerária, o senhor Júlio Garmatter, construiu depois o nomeado Palácio São Francisco [hoje Museu Paranaense] para marcar posição na sociedade", conta o arquiteto Humberto Mezzadri, professor da Universidade Federal do Paraná.

Carpideiras

Não há comprovação documental, mas dizem que exatamente neste trecho também passavam as carpideiras, senhoras que tinham por profissão rezar pelos que haviam morrido. "Se chegou a esta possibilidade porque a funerária ficava por ali, então elas poderiam passar para fazer suas rezas", conta a arquiteta Giceli Portela, que coordena os alunos na pesquisa arquitetônica e histórica.

Some-se ainda aos fatos fúnebres a descoberta de ossadas de seres humanos encontradas no início da Saldanha Marinho quando da demolição da primeira Catedral de Curitiba, em 1875 – a população costumava ser enterrada dentro ou ao lado da igreja. Hoje, o pequeno trecho continua tendo açougues (pelo menos dois) que ganharam a companhia de prostíbulos e restaurantes duvidosos. Apesar de não existir mais a crença de que açougue e funerária são lugares "malditos", só recentemente por ali abriu um armazém de comida árabe que pode ser a esperança de dias menos assombrados: a população, ainda que timidamente, tem ocupado a quadra, colocando um fim na prática dos mais antigos, de se afastar daquele local.

Açougues dentro da cidade eram um problema

Por volta de 1853, a imprensa de Curitiba já registrava a insatisfação da população, inconformada com os abates de gado que ocorriam nos açougues de dentro da cidade. Por causa disso, Manoel Ribas, em 1928, abriu um edital para criar o Matadouro Modelo de Curitiba que, um ano depois, já estava funcionando no Atuba (hoje Copel). "Era uma época em que não havia como congelar a carne, então era preciso matar o gado e, em seguida, vender os pedaços. Caso contrário, ela apodrecia", explica o arquiteto Humberto Mezzadri. Junto com a historiadora Elizabete Amorin de Castro e a antropóloga Zulmara Posse, ele lançou o livro O Matadouro Modelo, pela Fundação Cultural de Curitiba.

Carroça

O açougue de Garmatter, que funcionava atrás da funerária de luxo, também tinha alguns produtos processados, como presunto. "Ele tinha uma chácara com criação de suínos onde hoje é o Bosque do Alemão e uma outra de criação de gado perto da atual cruz do Pilarzinho. A carne abatida nesses locais chegava a Curitiba via carroça, em caixões com gelo", explica Mezzadri. Porém, o matadouro e açougue do Guabirotuba, que ficava dentro de Curitiba e foi criado em 1899, funcionou clandestinamente na cidade até a década de 1970. Mezzadri lembra ainda que, apesar de ser considerada uma profissão maldita, os açougueiros fizeram grandes fortunas porque tinham de saber comprar um boi barato para revendê-lo morto e a bom preço. Ou seja, eram, acima de tudo, excelentes empresários.

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