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Muitos se recusam a ler Michel Houellebecq por vê-lo como um misógino islamófobo – até porque ele é um misógino islamófobo. O debate sobre sua mais recente obra, Submissão, acabou sendo mais sobre sua persona do que sobre seu conteúdo. Uma pena. Poucas obras de ficção atuais foram tão precisas ao retratar o mal-estar social e político do ocidente. E poucas são tão úteis para entender o que está acontecendo no mundo.

O pano de fundo para a estória é a eleição de 2022, na França. Pilares do establishment político da França, o Partido Socialista, de centro-esquerda, e a União por um Movimento Popular, de centro-direita, não conseguem chegar ao segundo turno. Isso leva a uma disputa entre um partido religioso muçulmano moderado e a extrema-direita nacionalista.

Essa distopia parecia algo relativamente distante nas principais democracias do ocidente. Porém, um ano depois, no outro lado do Atlântico, Donald Trump foi alçado à condição de possível candidato a presidente dos Estados Unidos. É um efeito do mesmo fenômeno.

No livro de Houellebecq, a decadência dos dois principais partidos franceses é fruto de uma sociedade apática, insatisfeita e amedrontada. Esse mal-estar não é, necessariamente, causado pela política. Entretanto, uma elite política binária, completamente deslocada do mundo real, não consegue dar respostas críveis para a população.

A França se volta, então, para o populismo de extrema-direita e para o carisma de um religioso moderado – ambos, fora do esquadro político tradicional. Esse desfecho, claro, é ficção. Mas o contexto de decadência das elites políticas, insatisfação generalizada e extremismo nacionalista e/ou religioso é bastante próximo da realidade.

A vitória de Trump nas primárias é fruto de algo parecido. Cansados do mais do mesmo, os eleitores republicanos optaram por uma figura carismática, que diz o que as pessoas querem ouvir – e que, acima de tudo, nunca exerceu um cargo público. Pouco importa se Trump é comprovadamente um mentiroso compulsivo, hipócrita, inconsistente, que defende posições não apenas politicamente inaceitáveis, mas praticamente inexequíveis. Ele não é um “político”.

Se esse cenário é real na França e nos Estados Unidos, não é de se espantar que o Brasil fomente as mesmas condições. A elite política, pelo menos, tem feito sua parte de forma primorosa. PT e PSDB brincam de batata quente com a própria desonestidade, enquanto o PMDB se empenha em garantir que tudo o que há de pior na política brasileira fique exatamente igual.

Até aqui não tivemos um reflexo eleitoral desse fenômeno. Mesmo com a credibilidade em baixa, políticos tradicionais polarizaram as eleições de 2014. Porém, de lá para cá, a erosão da credibilidade da classe política foi rápida e constante, a ponto que se tornou quase impossível fazer qualquer previsão sobre quem estará vivo em Brasília daqui a dois anos.

Nesse cenário incerto, não podemos ignorar o risco de um Trump brasileiro. Figura nefasta, Jair Bolsonaro é tão hipócrita, ofensivo, mentiroso e inconsistente quanto o americano – embora não tenha o mesmo carisma. Ele trabalha para ocupar esse papel, mas outros ainda podem surgir. Por isso, leia Submissão e acompanhe a próxima campanha eleitoral dos Estados Unidos. Desse jeito, teremos uma chance melhor de combatê-lo.

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