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Como indicam os dados da Secretaria do Comércio Exterior do Ministério do Desenvolvimento, ainda que com alguns retrocessos pontuais, como se verifica nos doze meses compreendidos entre julho de 2009 a junho de 2010, houve um considerável aumento dos números de nossa balança comercial nos últimos 20 anos. Dos quase R$ 48 bilhões em mercadorias importadas e exportadas entre julho de 1995 e junho de 1996, alcançamos o patamar de mais de R$ 125 bilhões exportados e R$ 81 bilhões importados entre julho de 2005 e junho de 2006. Quase dez anos após, o aumento proporcional foi ainda maior, saltando para a casa dos R$ 238 bilhões de importação e R$ 235 bilhões de exportações entre julho de 2013 e junho de 2014.

Nesse contexto, é compreensível a preocupação do legislador com os ilícitos praticados no bojo dessas operações de importação e exportação, e, dessa forma, não causa surpresa a edição de uma lei reformadora do Código Penal sobre o tema, como se verifica na recente Lei 13.008 de 26 de junho de 2014, que deu nova redação aos crimes de descaminho e contrabando.

O principal ponto da reforma reside na cisão do antigo art. 334 do Código Penal, que a partir de agora se encontra dividido entre o tipo penal específico para o descaminho (o atual art. 334 do Código Penal – Iludir, no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadoria) e tipo penal do contrabando (o atual art. 334-A do mesmo Código – Importar ou exportar mercadoria proibida). Para além dessa mudança, pode-se fazer referência a duas outras: i) o aumento da pena para o contrabando, que passou de um a quatro para dois a cinco anos, e ii) o acréscimo da mesma causa de aumento de pena para ambas as hipóteses, no caso o §3º tanto do art. 334 quanto do art. 334-A, que assim restou delineado: A pena aplica-se em dobro se o crime de descaminho é praticado em transporte aéreo, marítimo ou fluvial. Ou seja, um contrabando marítimo, a partir de agora, será apenado com reprimenda que variará entre quatro a dez anos. Trata-se da mesma pena máxima de um estupro (art. 213 do Código Penal). Ou, ainda, de pena máxima superior à pena mínima de um homicídio doloso, para ficarmos em exemplos eloquentes da pouca proporcionalidade das novas sanções.

Não obstante o atendimento de eventuais anseios populares de mais repressão para o descaminho e o contrabando – tão inocentes quanto inócuos, vale frisar – importantes temas correlatos a esses tipos penais, e que trariam maior segurança jurídica para os cidadãos afetados pelas normas e para os operadores do direito que militam na seara, não foram abordados. Como exemplo tem-se a discussão de se o crime de descaminho constitui-se em crime contra a ordem tributária ou se seu melhor enquadramento é efetivamente no capítulo em que atualmente se encontra no Código Penal, qual seja, o dos crimes praticados por particular contra a administração pública em geral. Sem embargo da posição jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal em sentido contrário (HC 122325, Segunda Turma, julgado em 27/05/2014), se for considerada a essência da proibição, parece ser mais apropriado considerá-lo como crime tributário, afinal de contas, o núcleo da proibição é o não recolhimento, ou recolhimento a menor, dos impostos oriundos da importação, como é, inclusive, o entendimento do Superior Tribunal de Justiça (REsp nº 1.112.748/TO, representativo da controvérsia, julgado pela Terceira Seção daquela Corte Superior em 13/10/2009).

A importância prática dessa crucial diferença diz respeito à aplicabilidade, ou não, do regime jurídico dos crimes contra a ordem tributária, que dispõe de instrumentos como i) o necessário esgotamento da fase administrativa (na Receita Federal ou Estadual, que apurará a legalidade da autuação fiscal e o quantum efetivamente devido) para só então ser proposta ação penal, nos termos da Súmula Vinculante 24 do Supremo Tribunal Federal. Também abarcam ii) os mecanismos de suspensão da punibilidade por meio do parcelamento do tributo devido e da extinção da punibilidade no caso de sua respectiva quitação integral. E ainda dispõe da iii) aplicabilidade do princípio da insignificância. Quer nos parecer evidente que um crime contra a administração pública é incompatível com tais institutos. Contudo o que nos parece menos evidente é que o descaminho deva ser caracterizado como crime contra a administração pública, e não como crime tributário, haja vista sua natureza eminentemente arrecadatória.

Na mesma esteira caminham outros temas que foram solenemente ignorados pelo legislador na referida reforma, como o referente à interposição fraudulenta: inexistindo qualquer dano ao fisco, deve ser instaurado processo criminal (além do procedimento administrativo de perdimento) pelo simples fato de que o operador se equivocou em relação ao tipo de importação (se foi por encomenda, ou por conta e ordem de terceiro)?

Os estreitos limites desse rápido artigo não nos permitem abordar inúmeras outras questões que permeiam a temática. Contudo esperamos já ter deixado claro que o legislador, ao invés de nos entregar um pacote com um mero aumento das penas e das suas causas de aumento, poderia ter se dado ao trabalho de dar melhor tratamento aos principais temas que afligem os operadores jurídicos que se dedicam à análise penal das operações de importação e exportação.

Francisco Monteiro Rocha Júnior, doutor e mestre em Direito pela UFPR, é professor substituto de Direito Penal da UFPR, presidente do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico (IBDPE) e advogado criminalista.

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