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 | Antonio More/ Gazeta do Povo
| Foto: Antonio More/ Gazeta do Povo

"Para mim, principalmente no júri, é advogar por arte." É esta a frase que pode resumir a carreira do advogado Samuel Rangel. Além de atuar como defensor dativo – e ser um grande contador de histórias –, ele é fotógrafo, dramaturgo e músico e considera que essas carreiras ajudam na sua profissão "titular". Nesta entrevista, Rangel conta que se apaixonou pelo tribunal do júri ainda na faculdade e, depois da primeira experiência profissional, não parou mais – são mais de 300 júris (ele quer chegar aos 500). "Quando passo muito tempo sem fazer júri, começo a incomodar o povo lá em casa, que diz: ‘vá fazer um júri que você está muito nervoso’", diverte-se. A entrevista foi concedida à Gazeta do Povo justamente no local em que mais atua: o Tribunal do Júri de Curitiba, mas, diferentemente do usual, desta vez ele se sentou na cadeira dos réus. "Mas a história aqui é real", reflete quando perguntado da relação entre as artes e a advocacia.

VÍDEO: Samuel Rangel conta histórias divertidas e emocionantes da carreira

O senhor pode falar um pouco da sua carreira? Ela se confunde com a história do Tribunal do Júri de Curitiba?

Formei-me pela Universidade Federal do Paraná em 1994. Fiz meus primeiros júris na faculdade e foi quando surgiu minha paixão pelo tribunal do júri. O primeiro foi em 1995, em Mangueirinha, no interior do estado, depois atuei em Curitiba, em Goiás, em Santa Catarina e em São Paulo, a maior parte como dativo. Contanto com o de hoje [a entrevista foi realizada no dia 15 de maio], são 323 júris. Não chego a fazer parte de toda a história do júri de Curitiba, até porque o plenário daqui é antigo. Recentemente, inclusive, queriam levar o plenário para o antigo complexo presidiário do Ahú.

Mas é um lugar histórico, não é?

Sem dúvida. Deus me livre tirarem daqui, vai perder toda a história envolvida nestas paredes. Inclusive, há placas de homenagem no hall de entrada. Um dia, se Deus quiser, vai ter uma minha, com uma homenagem póstuma: "Samuel Rangel, advogado que fez do tribunal do júri a sua vida". E atendendo, para cada dez processos, oito de graça.

Com essa proporção, o senhor avalia que trabalha por paixão mesmo?

Com certeza. Até porque, se não houvesse paixão, realmente não haveria nem por quê. O júri é a instituição mais democrática e célere. É apaixonante. Quando passo muito tempo sem fazer júri, começo a incomodar o povo lá em casa, que diz: "vá fazer um júri que você está muito nervoso" [risos].

É uma terapia?

Para mim, melhor que a música. Gosto tanto do que acontece aqui. Lógico que vivemos momentos tristes, nem todas as decisões são as que a gente entende como as mais acertadas, mas é onde vemos a sociedade julgando, e promotor, advogado e juiz sem distinção hierárquica, respeitando-se como iguais.

O senhor defende a atuação de advogados na defensoria dativa...

Atuo como advogado dativo porque a defensoria pública não vence, o número de defensores é insuficiente, é uma espécie de SUS do Judiciário. Fiz um anteprojeto de lei de regulamentação da defensoria dativa como opção complementar à defensoria. Os advogados precisam se convencer de que existe a necessidade de cumprir o juramento de defender as pessoas independentemente de elas terem ou não condições financeiras. Os recém-formados fazem três ou quatro júris dativos para aprender e depois não atendem mais. É triste, é como usar os pobres como ratos de laboratório. Lógico que o Estado dificilmente paga e também atrasa [os honorários]. De tudo que fiz aqui, não recebi nem 10%. Mas o advogado tem que ter essa indignação com a justiça, com a ausência do Estado, com o Estado insuficiente, que tudo cobra e nada oferece.

Em um dos seus textos disponíveis na internet, o senhor faz um balanço de carreira e comenta que esperava encontrar tempo para escrever um livro. O senhor encontrou esse tempo? Do que ele trata?

Encontrei, mas o problema é que acho que ele nunca está pronto [risos]. Primeiro porque sempre o próximo é o júri que você não pode deixar de fora. É um livro sobre crônicas de júri e também têm questões técnicas e doutrinárias interessantes para os operadores do direito.

Uma leitura para aprender e se divertir também?

Vamos trocar o "divertir" por sensibilizar e emocionar. Se eu falar só dos episódios engraçados que aconteceram aqui seria injusto, têm muitos episódios emocionantes. O próprio júri do Sabiá, que aconteceu, se não me engano, em 1997: as únicas seis pessoas que assistiam ao júri eram os filhos do réu, a mais nova com quatro e a mais velha com dezesseis anos. Conseguimos um bom resultado justamente por isso. O próprio promotor ajudou a acelerar a expedição do alvará de soltura para que a gente pudesse colocar o pai novamente no seio familiar.

Mas ele não está pronto ainda?

[risos] Não, ele nunca está. Não sei em quanto tempo ainda, mas, quem sabe, eu deva lançar o primeiro volume já.

O senhor é contra a diminuição da maioridade penal e sugere a adoção de um indicador biopsicossocial na avaliação dos menores infratores. O que seria isso?

O critério que trata da maioridade penal hoje é biológico. Como se um evento mágico, um segundo após a meia-noite transformasse o cidadão em absolutamente capaz e responsável. Entendo que ser justo é dar a cada um conforme sua responsabilidade e que o amadurecimento do ser humano é gradativo. Então, o critério da maioridade também deve ser gradativo e biopsicossocial. Porque, às vezes, o menino tem 18 anos, mas maturidade de 16; ou tem 16, e maturidade de 21. O critério psicológico seria fundamental para definir o quanto esse cidadão é responsável. E social porque o sistema também é imperativo na hora de formar o caráter. Não podemos dar o mesmo trato para o menino que nasce em um condomínio fechado àquele que nasce sob a ditadura do tráfico e tem como herói o traficante. Justamente por não se fazer presente e não conseguir propiciar as garantias fundamentais para essas pessoas, o Estado acaba propiciando um desvirtuamento do caráter dessa criança.

E falando dessas diferenças sociais: o pobre não tem acesso à justiça e somente o pobre vai preso. O senhor compartilha dessa ideia?

Claro, é a realidade. Estamos vendo a ação 470 [do mensalão] com vários recursos, é um absurdo. O pobre não. Ele é preso em flagrante, não tem defensoria pública nem condições de contratar um advogado para obter um relaxamento dessa prisão, responde ao processo preso e, exatamente por isso, o andamento do processo é mais rápido. Toda regra tem sua exceção. Vemos casos em que, nem com todo o dinheiro e toda a influência do mundo, há escape, mas são crimes de barbárie, que provocam comoção social.

E como o senhor se sente diante dessa realidade?

Um lutador. Estou lutando para tentar dar a essas pessoas as mesmas condições que teriam quando me contratam via patrocínio. De certa forma, isso me alivia muito. Acho muito triste o advogado achar que tudo é negócio. O dinheiro está no mundo dos efeitos, não no mundo das causas.

E quanto à sua relação com a arte: o senhor é músico, dramaturgo... Como isso se relaciona com o trabalho no tribunal do júri?

Os advogados têm que saber que somos chatos. No afã de atingir maturidade no Direito, o advogado acaba se atropelando e anulando outras fases da vida. Por isso, temos que encontrar complemento em outras coisas: ler poesia, literatura, justamente para se sensibilizar, para se tornar humano. Percebi que a música me proporcionou um bom relacionamento com a plateia, o que facilitou muito no júri. E a dramaturgia é fantástica não só pelo exercício da escrita, mas pela liberação da imaginação. Com atividades artísticas, você consegue advogar por arte e, para mim, principalmente no júri, é advogar por arte.

E uma coisa influencia a outra?

Com certeza. Em muitos casos, o tribunal do júri pode parecer um teatro. Tem plateia e tudo. Mas a história aqui é real. Alguém morreu e alguém está preso. A realidade impõe a responsabilidade e implica limites éticos. Irresponsabilidade é transformar um teatro em show. O grande advogado não é aquele que consegue grandes resultados com mentiras, mas com verdades que estão no processo, às vezes disfarçadas. Quem consegue grandes resultados com grandes mentiras é um grande mentiroso, só isso.

JUSTIÇA E DIREITO | 8:52

Para o advogado Samuel Rangel, o que acontece entre as paredes do tribunal do júri é mais que uma terapia. Com quase 350 júris no currículo, além de experiência, o defensor tem muitas histórias divertidas e emocionantes para compartilhar.

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