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gerson klaina/tribuna do parana

O mundo atravessa uma fase de deslumbrante produção de conhecimento e tecnologia. A complexidade ganhou contornos inimagináveis. Antes do século XX, era factível conhecer e compreender os processos de fabricação e montagem da grande maioria de produtos. Os usuários tinham ao menos alguma noção de como eram feitas as panelas, malas, roupas, carruagens, fornos, fogões, e, com um pouco mais de esforço, era possível compreender o funcionamento de estruturas mais complexas, como a máquina a vapor e, até mesmo, os relógios. Atualmente, além de não sabermos como foram feitos os principais aparelhos eletrônicos que usamos em nosso cotidiano, praticamente sequer sabemos usá-los em toda sua potencialidade, sub-utilizando as funções de computadores, smartphones, televisores e aparelhos eletrônicos em geral.

A semente da transformação, contudo, estava plantada desde meados do século XV, quando Johannes Gutenberg desenvolveu a prensa móvel. Antes da prensa móvel, os livros eram produzidos pelos “escribas” e copiados manualmente pelos “copistas”; custavam verdadeiras fortunas (possivelmente algo como US$ 20 mil em valores atuais), sendo acessível a pouquíssimas pessoas. Estima-se que por volta de 1500, poucos anos após a invenção de Gutenberg, mais de 250 centros europeus possuíam as prensas móveis e haviam produzido mais de 13 milhões de livros. Com esse impulso, o conhecimento e as ideias passaram a transitar de forma muito mais ágil e acessível a um número muito maior de pessoas, potencializando a produção de mais conhecimento e informação, trazendo para a humanidade um círculo virtuoso de desenvolvimento.

Com tanto conhecimento acumulado e armazenado, o império dos livros começou a ruir nas últimas décadas do século XX, com o aperfeiçoamento das primeiras máquinas computacionais inventadas e o surgimento dos computadores pessoais. Aos poucos, as ideias passaram a transitar na forma de dados e em rede, não mais em papel e livros. O advento e a massificação do uso dos computadores (inclusive smartphones e tablets), especialmente após a explosão da internet, levou a humanidade a um salto gigantesco na produção de conhecimento e informação. Estima-se que em 2015 será produzida mais informação que toda a informação produzida no mundo até o ano anterior.

Mudanças sociais profundas estão ocorrendo em ritmo acelerado. A tecnologia derrubou fronteiras e encurtou distâncias. Relações de trabalho e comerciais são assumidas no mundo virtual, com consequências no mundo real, mas não facilmente alcançadas pelos meios tradicionais de regulação.

A lei é o principal meio de regulação social. Em cada agrupamento humano, leis são produzidas para ordenar a vida das pessoas (físicas e jurídicas) em determinado território. Enquanto instrumento, a lei vem sendo produzida da mesma forma há séculos. Tem vocação para ser ampla, geral e impessoal, submetendo todos ao seu comando. Até a revolução tecnológica, era um instrumento com razoável grau de eficiência para regulação social.

A tecnologia, entretanto, tem criados severos problemas à lei, na forma em que a concebemos. Os principais problemas podem ser resumidos à ausência de fronteiras no mundo virtual, anonimato, replicação e banimento de intermediários.

No ciberespaço não existem fronteiras. A informação transita velozmente de um lado a outro do globo sem necessitar de passaporte, validação ou anuência. Namoros, casamentos, relações de trabalho, trapaças, fraudes, desvios de dinheiro, furto de dados de cartões de créditos ou senhas bancárias, atendimento psicológico, seitas, enfim, centenas de formas imagináveis de relacionamento humano podem ser travadas independentemente da localização física das pessoas envolvidas.

Além da ausência de fronteiras, o mundo virtual não exige reconhecimento oficial. Qualquer um pode ser quem quiser, mesmo se quiser ser ninguém. O anonimato é a regra, sendo a identificação real um ato voluntário de quem deseja se identificar. Da combinação entre ausência de fronteiras e ausência de identificação resulta um vazio de legalidade quase absoluto, no qual o crime encontrou ambiente propício para florescer. Do simples e quase ingênuo ataque à honra alheia até o comércio de drogas, pessoas e armas, passando pelo terrorismo e crimes financeiros de escala global.

Outra característica marcante desse território livre e sem fronteiras chamado internet é a replicação, ou seja, a potencialidade de toda informação ser imediatamente replicada, muitas vezes de forma automática. Certa ou errada, criminosa ou não, a informação que transita pela rede é apreendida e replicada. Músicas, filmes e livros piratas, códigos de vírus de computador, ataques contra a honra de pessoas, boatos, senhas, dados sigilosos. Como a informação geralmente é encontrada por intermédio de serviços de buscas, como o Google, ordens judiciais contra esses servidores assegurando o “direito ao esquecimento” podem alcançar certo grau de eficácia, mas nenhuma ordem judicial conseguirá banir do mundo virtual qualquer tipo de informação.

Por fim, um dos aspectos que mais têm motivado reações legalistas ultimamente vem a ser o banimento de intermediários. A tecnologia e a internet aproximaram pessoas. Mas, mais do que isso, aproximaram os consumidores dos produtores de bens e serviços. Esta aproximação vem gerando verdadeiro cataclismo financeiro em diversas áreas.

Quando Gutenberg inventou a prensa móvel, centenas de milhares de copistas e escribas perderam seus empregos. Não se pode olvidar que certamente as guildas de então bravamente lutaram contra a inovação que desestruturou todo um setor econômico. O mesmo aconteceu com os criadores de cavalos e construtores de carruagens quando surgiram os primeiros automóveis; com os fabricantes de óleo para iluminação noturna das cidades quando surgiram as lâmpadas elétricas; com os fabricantes de carvão quando surgiram os fogões a gás. Exemplos não faltam. Todos eles seguem a mesma dinâmica: a tecnologia destrói um setor econômico para criar outro em seu lugar (parafraseando Torsten Hägerstrand).

A destruição de velhas estruturas e criação de novas são eventos sociais e financeiros complexos, ocasionando o surgimento de demandas por novas leis a regularem a situação. O movimento inicial geralmente busca o auxílio legal para refrear a inovação, garantindo assim a manutenção do status econômico do setor em transformação.

A famosa “Petição dos Fabricantes de Vela”, de Frédéric Bastiat, uma bem humorada crítica aos detratores da concorrência, retrata bem a situação. Trata-se de petição endereçada aos Membros da Câmara dos Deputados francesa assinada pelos “fabricantes de velas, candeias, lâmpadas, candelabros, lanternas, corta-pavios, apagadores de velas, e dos produtores de sebo, óleo, resina, álcool, e em geral de tudo relativo à iluminação”, com o seguinte teor: “Estamos sofrendo a intolerável concorrência de um rival estrangeiro que, ao que parece, se beneficia de condições muito superiores às nossas para a produção de luz, com a qual ele inunda completamente o nosso mercado nacional a um preço fabulosamente baixo. No momento em que ele surge, as nossas vendas cessam, todos os consumidores recorrem a ele, e um ramo da indústria francesa, cujas ramificações são inumeráveis, é subitamente atingido pela mais completa estagnação. Este rival, que vem a ser ninguém menos que o sol, faz-nos uma concorrência tão impiedosa, que suspeitamos ser incitado pela pérfida Inglaterra (boa diplomacia nos tempos que correm!), visto que tem por aquela esnobe ilha uma condescendência que se dispensa de ter para conosco. Pedimos-vos encarecidamente, pois, a gentileza de criardes uma lei que ordene o fechamento de todas as janelas, clarabóias, frestas, gelosias, portadas, cortinas, persianas, postigos e olhos-de-boi; numa palavra, de todas as aberturas, buracos, fendas e fissuras pelas quais a luz do sol tem o costume de penetrar nas casas, para prejuízo das meritórias indústrias de que nos orgulhamos de ter dotado o país - um país que, por gratidão, não poderia abandonar-nos hoje a uma luta tão desigual.”

Trazendo para o presente, percebe-se a movimentação de vários setores econômicos contra serviços de tecnologia que banem intermediários, aproximando produtores (de bens e serviços) e consumidores, diminuindo preços e aumentando a eficiência. Aplicativos como o Airbnb, cujo valor de mercado ultrapassa US$ 80 bilhões de dólares, colocam à disposição dos usuários de todo o mundo mais de um milhão de locais para se hospedarem, em concorrência aberta com hotéis e pousadas. O Uber aproxima donos de veículos de usuários que necessitam de deslocamento, concorrendo com os táxis. Uma versão para os mais bem aquinhoados, o JetSmarter oferece assentos pagos em jatos e aviões executivos. O aplicativo Relayrides permite que usuários aluguem veículos diretamente de seus proprietários, concorrendo com as empresas de locação. Aplicativos de chamamento de táxis tem colocado as cooperativas de taxistas e “rádio-táxis” na berlinda. Todos os serviços da economia informal podem ser encontrados em aplicativos, especialmente os serviços manuais de baixa complexidade, como eletricistas, encanadores, mecânicos, etc. E não falta muito para que mesmo o dinheiro prescinda de instituições bancárias para se movimentar.

Assim como na “Petição dos Fabricantes de Vela”, os lobbies para que surjam leis para impedir ou refrear a força das inovações sempre estão acompanhados de argumentos jurídicos notáveis, aptos a convencer os parlamentares da justiça de suas pretensões. E sempre encontrarão parlamentares dispostos a agradar determinada classe ou setor econômico, como taxistas e donos de hotéis.

Agregue-se a todos os argumentos outro, igualmente poderoso: a perda da arrecadação tributária. Ao facilitar a aproximação dos produtores e usuários, perde o Estado o controle sobre a circulação de recursos, diminuindo a arrecadação de tributos. Os donos dos apartamentos que alugam seus quartos pelo Airbnb não possuem alvarás de funcionamento e não pagam impostos municipais, estaduais e federais sobre sua atividade econômica. Da mesma forma, ocorre com os proprietários que passam a levar passageiros utilizando o Uber. Em um país como o Brasil, com carga de impostos elevada, a desoneração tributária através da tecnologia é o grande trunfo do apelo comercial desses aplicativos.

Resta então à lei, arcaico instrumento de regulação social, a responsabilidade de procurar absorver e regular as transformações sociais e econômicas decorrentes do advento de instrumentos tecnológicos. Criminalizando novas condutas, estabelecendo presunções e ficções para não perder receita tributária, criando agências e serviços de controle, marcos regulatórios, buscará a lei atender às necessidades de setores economicamente organizados, de consumidores e produtores, sempre se equilibrando entre as forças resultantes do processo destrutivo e criativo da inovação. Novos desafios que devem ser enfrentados com novos instrumentos legais.

A riqueza do embate põe em xeque não apenas o poder da lei como instrumento de regulação social, mas também sua própria natureza. A tecnologia que aproxima usuários e produtores também serve para aproximar os cidadãos do poder de legislar. A função dos intermediários legislativos também deve ser repensada sob um novo prisma tecnológico, especialmente quando se percebe a permanente e duradoura discrepância entre a vontade dos representados e a dos representantes eleitos. Um velho problema que deve ser enfrentado com novas soluções. Que venha a Lei 2.0, com maior densidade democrática.

*Anderson Furlan, juiz federal, especialista, mestre e doutorando em Ciências Jurídico-Econômicas pela Faculdade de Direito de Lisboa, autor das obras Direito Ambiental (Ed. Forense) e Planejamento Fiscal (Ed. Forense), além de outros livros e artigos publicados no Brasil e no exterior. Presidente da Associação Paranaense dos Juízes Federais - APAJUFE (2010-2012; 2014-2016). Escreve quinzenalmente para o Justiça & Direito

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