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Nos primeiros dias de janeiro deste ano, entrou em vigência a Lei n.º 13.146, de 6 de julho de 2015, que institui o Estatuto da Pessoa com Deficiência. O Estatuto é decorrente do Decreto Legislativo n.º 186, de 2008, que aprovou a assinatura da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, pelo Brasil, no ano de 2007, e sua posterior promulgação pelo Decreto Executivo n.º 6.949, de 25 de agosto de 2009. Desde então, o texto da Convenção já produzia efeitos no país, com força de Emenda Constitucional.

Apesar do status hierárquico da Convenção, suas importantes repercussões e inovações custaram a ter efetivo reconhecimento no ordenamento jurídico nacional, tendo sido necessária a elaboração do Estatuto para dar verdadeira operabilidade aos direitos consagrados no documento internacional. Exemplo disso é o regime das incapacidades, profundamente alterado. Agora, apenas os menores de 16 anos são considerados absolutamente incapazes. Por outro lado, passam a ser considerados relativamente incapazes aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade, sendo excluídas dessa categoria as pessoas com deficiência mental que tivessem discernimento reduzido e as sem desenvolvimento mental completo, até então denominadas “excepcionais” pelo Código Civil.

Em que pese a Convenção houvesse tacitamente revogado os dispositivos incompatíveis com os arts. 3.º e 4.º do Código Civil, apenas com a vigência do Estatuto é que o aludido regime das incapacidades teve substancial mudança para refletir os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil. Por um lado, o Estatuto contribuiu para uma maior clareza desse instituto. Por outro, revela que a cultura jurídica brasileira tem maior apego pela legislação ordinária que por tratados e convenções internacionais, ainda que devidamente incorporados ao ordenamento jurídico.

O Estatuto tem por objetivo a inclusão da pessoa com deficiência, de modo a assegurar a igualdade e a não discriminação, bem como promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania. Dentre as garantias reconhecidas pelo Estatuto estão a dignidade da pessoa com deficiência ao longo de toda a vida, o direito à habitação e a reabilitação, saúde, educação e trabalho, entre outros.

Apesar dessas importantes conquistas para as pessoas com deficiência, inclusive com a tipificação de novos crimes que punem o preconceito contra pessoas com deficiência, entendemos que o Estatuto pecou em não alterar o Código Penal brasileiro. Primeiramente, porque a lei penal AINDA contém expressões estigmatizantes e pejorativas, além de imprecisas, que destoam do espírito da Lei (EPD). Exemplo disso são as expressões “desenvolvimento mental incompleto ou retardado” (art. 26) e “inválido” (arts. 135 e 244), encontradas no Código, quando a expressão correta a ser empregada, vez que encontra definição legal no Decreto n.º 3.298, de 1999, seria “pessoa com deficiência mental ou física”.

Um ponto mais sensível do Código Penal que não foi observado pelo legislador diz respeito aos crimes contra a dignidade sexual. De acordo com a reforma parcial realizada pela Lei n.º 12.015, de 7 de agosto de 2009, passou a ser crime de estupro de vulnerável a prática de qualquer ato sexual com pessoa menor de 14 anos ou “alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato”, punido com 8 a 15 anos de reclusão (art. 217-A). Com isso, as pessoas com deficiência mental foram consideradas vulneráveis, isto é, absolutamente incapazes de consentir com a prática de atos sexuais. Pelo Estatuto, no entanto, a deficiência, ainda que mental, não afeta a plena capacidade civil da pessoa, inclusive para exercer direitos sexuais e reprodutivos (art. 6.º). Tal capacidade está assegurada desde antes pela Convenção, que foi assinada pelo Brasil ainda em 2007, antes da criação do tipo penal em questão. É no mínimo curioso observar que, no mês de agosto de 2009, ao mesmo tempo em que se concedia status de Emenda Constitucional à Convenção, reconhecendo o exercício de direitos sexuais e reprodutivos das pessoas com deficiência, criava-se o crime hediondo de estupro de vulnerável, impondo relevante incapacidade sobre tais pessoas. Esta inobservância pelo legislador, seja em 2009 ou 2015, cria relevante dificuldade aos operadores do direito, que precisam avaliar, caso a caso, quando uma pessoa com deficiência tem ou não o necessário discernimento para a prática de ato sexual, o que gera incerteza e insegurança jurídica, não apenas para os juízes, promotores e advogados, como para as próprias pessoas com deficiência e seus parceiros.

*Guilherme Brenner Lucchesi, professor substituto da Faculdade de Direito da UFPR. Doutorando em Direito na UFPR. Mestre pela Cornell Law School (EUA). Advogado. Contato: guilherme@lxp.adv.br

*Luciana Pedroso Xavier, professora do Unicuritiba. Doutoranda e Mestre em Direito na UFPR. Advogada.

Contato: luciana@lxp.adv.br

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