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Senhores Senadores:

Ingressando junto com o senador Álvaro Dias na sala onde se realizaria a sabatina de Luiz Edson Fachin pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara Alta, pude testemunhar a abordagem de quatro ou cinco cidadãos que exibiam várias folhas de papel. Afirmavam ansiosamente estarem ali milhares de assinaturas de eleitores de um município do interior de São Paulo repudiando a candidatura de Fachin e que o Senador “pensasse bem no que iria fazer”. Um deles, aumentando o decibel de voz e gesticulando descomedidamente, lançou o repto, alto e bom som:

“Senador! Pense bem nos milhões de votos que o senhor pode perder. O senhor não está pensando em seu futuro? ”.

Caminhando tranquilo, seguro e polidamente Álvaro Dias respondeu:

“Eu estou pensando no futuro do Brasil”.

Aquela cena foi para mim o momento de ouverture de um teatro do absurdo, cujo enredo já havia sido anunciado pelos mais variados e surpreendentes meios de comunicação individual e coletiva. Um número infinito de redes sociais distribuía armas e munição para atacar o candidato ao cargo de Juiz como se ele fosse o comandante de um exército com imenso poder verbal capaz de solapar as instituições democráticas do próprio país, afrontar princípios fundamentais gravados na Constituição e sempre com o poder maligno das ideias disfarçadas pelo tom melífluo da palavra. Ele poderia instrumentalizar malsinadas doutrinas capazes de subjugar ideológica e politicamente outros magistrados da Suprema Corte Brasileira e seduzi-los a acompanhá-lo ao encontro de um admirável mundo novo, que embora com algumas adaptações à concepção original de Aldous Huxley, faria com que brasileiros e os estrangeiros residentes no país fossem submetidos a lavagens cerebrais para destruir valores morais e sociais da comunidade. Entre as metas satânicas de Fachin estariam, por exemplo, a defesa da poligamia, a desapropriação de terras produtivas, a abolição do direito de propriedade em favor de conquista possessória esbulho possessivo eufemisticamente batizado de função social, arbitrada de sua função social, arbitrada por critérios flutuantes e sem necessidade de se observar as garantias do devido processo legal que deve reger as desapropriações por necessidade ou utilidade pública ou por interesse social. Questionado a esse respeito por um dos sabatinadores, que enxergava uma grave contradição e um evidente paradoxo o fato de um professor de Direito sustentar tal abolicionista ideia, ele respondeu enfaticamente:

“Está assentado no texto constitucional o direito de propriedade como fundamental. Eis, portanto, limite à atuação do juiz: a letra imperativa da Constituição”.

Essa proclamação, que é inerente à ética do advogado pois tem o dever de “contribuir para o aprimoramento das instituições, do Direito e das leis”1, foi interpretada por alguns como um autêntico Ato de Fé, típico das Inquisições hispânicas para a salvação do corpo e da alma. Também o admirável mundo novo rejeitaria a monogamia como indicador da estabilidade conjugal e protegeria a mulher obrigando o homem a compensá-la financeiramente pelas relações sexuais livres e efêmeras, conferindo-lhe o especial registro civil de amante.

Ao iniciar o seu lúcido, intimorato e persuasivo relatório sobre vida e obra do indicado e propor, com claros, justificáveis e definitivos argumentos, a aprovação de seu nome, o senador Álvaro Dias observou que o “momento de esquizofrenia” que estava dominando o país era o combustível para a desordem dos conceitos, a anomia das convicções e a confusão entre situações jurídicas distintas da vida profissional do candidato como advogado público e privado.

Mas, rompendo o cordão umbilical da intriga, do preconceito e da intolerância, os nobres representantes do Estado Democrático de Direito na Câmara Alta, promoveram uma fecunda, sincera e honesta arguição ilustrada pela objetividade das perguntas sobre os assuntos mais distintos e complexos em temas de Religião, Sociedade, Direitos Humanos, Política, Segurança, Administração Pública e tantos outros conteúdos da vida individual e coletiva. Eram perguntas sobre assuntos que gravitam em torno de problemas, interesses e valores da sociedade e dos cidadãos. Todas as questões eram respondidas com ponderações e argumentos racionais, além da discrição própria de quem participa de um ato solene quanto aos meios e métodos de exposição. Sem arrogância, bajulação ou sofisma; ao contrário, olhando nos olhos de quem o estava inquirindo. Suas atitudes foram adequadas à postura intelectual e social de um magistrado de Corte Superior de Justiça e também do juiz de primeiro grau de jurisdição ao presidir com moderação a audiência de uma causa na qual o emocional conflito de interesses e a radicalização dos litigantes pode sair do rumo normal dos trabalhos que devem ser realizados com observância de balizas legais e éticas.

A sabatina do professor e advogado Luiz Edson Fachin, por 12 (doze) horas caracterizou um valioso precedente com a marca histórica dos trabalhos dessa natureza pela Corte Especial Parlamentar. Acerca do procedimento da arguição, impressionaram-me vivamente as restrições feitas pelos senadores Ronaldo Ramos Caiado, Ricardo de Rezende Ferraço, Aloysio Nunes Ferreira e vários outros acerca da exiguidade do tempo para as inquirições, respostas e réplicas tendo como parâmetro de desconformidade os nove meses gastos pela Presidente da República para fazer a seleção para suprir a vaga do Ministro Joaquim Barbosa.

O respeito intelectual e a urbanidade de trato nos diálogos; a crítica respeitosa sem perder o vigor; a discordância de ideias; a investigação de atos e fatos do passado e o exame presente do marco regulatório das convicções pessoais, revelaram posições e contradições próprias da condição humana de quem presta um depoimento pessoal sobre a sua vida e a sua história perante uma banca de notável credenciamento institucional. A seleção pelo Poder Executivo para integrar o Judiciário, mediante a aprovação do Legislativo, realiza a tríplice aliança constitucional modelada pela independência e harmonia entre os poderes do Estado.

Parafraseando Winston Churchill posso dizer que esse critério, herdado da secular experiência democrática norte-americana, é a pior forma de escolha imaginável, a exceção de todas as outras que foram experimentadas ou podem ser como, por exemplo, a forma da reserva de mercado para as corporações jurídicas. Não conheço outro método melhor. O presidente da República indica e o Senado examina se concorrem os requisitos da reputação ilibada e do notório saber jurídico como pressupostos essenciais exigidos pela lei fundamental. Mas o exame de capacitação não deve se exaurir nesses aspectos, embora relevantíssimos. A sociedade, representada pelo Parlamento, precisa saber o que pensa o candidato sobre o homem, o mundo e a vida porque de um modo ou outro e em algum lugar e tempo eles terão um encontro marcado pelas pautas forenses quando o cidadão comparecer, voluntária ou obrigatoriamente, por si mesmo ou representado. A comunidade precisa e deve saber - com tempo para se informar e ser informada - se ele é humanista ou indiferente às dores do mundo; se é cordial ou ácido no trato pessoal; se trata com urbanidade as partes, testemunhas e servidores; se cumpre os prazos ou é tardinheiro; se tem uma cultura geral sobre os valores e interesses da sociedade; se vai cumprir o mandamento reproduzido no art. 5º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro: “Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige às exigências do bem comum; se a sua formação religiosa vai interferir na formação do convencimento para julgar.

Ao manifestar-se perante o Senado Federal, individualmente ou em grupo, por qualquer meio ou instrumento de acesso, o cidadão exerce a faculdade do voto indireto e público. Em texto memorável a respeito do sufrágio, JOSÉ DE ALENCAR (1829-1877), o crítico, romancista, dramaturgo e Ministro dos Negócios da Justiça (1868-1870), nos diz:

“O voto não é, como pretendem muitos, um direito político, é mais do que isso, é uma fracção da soberania nacional; é o cidadão”.

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A consideração e o respeito dedicados ao candidato durante toda a prova, a pontualidade e o interesse público das perguntas foram correspondidos com a seriedade e racionalidade das respostas.

Na honrosa cadeira do Senado Federal, em dia e noite mais importante de sua vida pessoal e familiar, da carreira de professor universitário, das atividades de advogado, das aspirações de cidadão, Luiz Edson Fachin falou para os meios de comunicação e, em especial com voz e imagem transmitidas pela televisão para milhões de espectadores de todo o Brasil, com repercussão no exterior. E o fez com humildade, sabedoria e vigor característicos de um Mahatma Gandhi. Vale repetir o seu juramento público acima transcrito quando, em resposta à pergunta que partia do pressuposto de que ele havia, em diversas ocasiões, menosprezado o direito à propriedade, afirmou:

“Está assentado no texto constitucional o direito de propriedade como fundamental. Eis, portanto, limite à atuação do juiz: a letra imperativa da Constituição” (Grifos meus).

Nada mais se poderia exigir porquanto é este um dos mandamentos exigidos na liturgia da posse. A independência para julgar atos e fatos de quaisquer partidos políticos; a autonomia funcional para apoiar temas caros aos ruralistas; a devoção para os objetivos do Estado Democrático de Direito; o seu compromisso para assegurar os princípios e as regras do devido processo legal; a opinião de que a antecipação da maioridade penal não pode ser feita sem uma avaliação da Política Criminal e Penitenciária para não remeter jovens com a personalidade ainda em formação na comunhão de condenados maiores e perigosos nas penitenciárias que, como disse alguém há muito tempo, são “erros monumentais talhados em pedra” e mais... e mais...

A delicada persuasão ao interlocutor, a exibição de imensa cultura jurídica e social e a demonstração de sinceridade de alma durante todo o tempo de inquirição, justificou duas manchetes e um grande material na edição 7 do dia seguinte na Folha de São Paulo: “ Indicado ao STF se diz apto para julgar qualquer partido” (A1); “Indicado por Dilma promete independência no Supremo”.

Na provação bíblica que está vivendo, sem mostrar revolta por acusações iníquas e juízos temerários; escondendo na alma as lesões morais que o atingiram, Luiz Edson Fachin irá cobrir o passado com a toga do juiz, a veneração pelo Direito, a prática da Justiça e o amor a Deus.8

E se alguém ainda pretender que o ser humano - “esse cadáver adiado que todos nós somos”, como lembra Fernando Pessoa - seja um monumento de coerência, que façam, vez por outra, uma leitura na consciência, pois:

“Há pessoas que só conhecem tese e antítese, corpo e alma, natureza e espírito, realidade e valor, poder e dever, ou como querem que lhe chamem. Elas podem gabar-se de seu método puro, dos seus conceitos claros, da sua argumentação segura. Pelo contrário, aquele que, para além das antinomias, procura, tateando, a unidade superior, não tem nenhum guia a protegê-lo contrapassos errados. Mas só ele pode esperar que uma hora feliz lhe abra caminho para o ponto alto, do qual, na síntese criadora de uma concepção unitária do mundo se superem todas as aparentes antinomias”.

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* René Ariel Dotti (15.11.1934). Advogado nas áreas criminal e de família desde 1958 ••Professor Titular de Direito Penal, por concursos: Auxiliar de Ensino (1966); Assistente (1970); Adjunto (1979) e Titular (1981) •• Comenda do Mérito Judiciário do Estado do Paraná ••Secretário de Estado da Cultura do Paraná (1987-1991) •• Medalha do Mérito Legislativo, da Câmara dos Deputados por proposta do Deputado Osmar Serraglio (2007), “como reconhecimento pelos relevantes serviços prestados ao Poder Legislativo e ao Brasil” (Membro de comissões de reforma do sistema penal (1979 a 2000) constituídas pelo Ministério da Justiça•• Corredator dos projetos que se converteram nas Leis 9.209 e 9.210/1984 (Reforma da Parte Geral do Código Penal e instituição da Lei de Execução Penal) ••Redator do Anteprojeto de Reforma do Tribunal do Júri (Lei nº 11.689/2008 •• Condecorado com a Medalha Tenente Max Wolff Filho da Legião Paranaense do Expedicionário (20.02.1988) •• Prêmio Ordem do Mérito Judiciário do Trabalho, conferida pelo Tribunal Superior do Trabalho, como uma das personalidades civis de 2014 •• Medalha Santo Ivo - Padroeiro dos Advogados, conferida pelo Instituto dos Advogados Brasileiros, por ocasião da XXI Conferência Nacional da OAB (Curitiba, nov. 2001 )•• Homenagem do Conselho Federal da OAB,Comissão Parlamentar Memória, Verdade e Justiça e a Comissão de Constituição Justiça e Cidadania da Câmara dos Deputados, em sessão pública de 13.11.2014, “pelos serviços advocatícios prestados na defesa de presos e perseguidos políticos na ditadura militar” •• Homenagem do Conselho Federal da OAB “em reconhecimento aos relevantes serviços desenvolvidos na defesa dos direitos civis e na luta pela redemocratização do Brasil, por ocasião da passagem do cinquentenário do Golpe Militar” (31.03.2014) •• Presença (foto e texto) no livro “Coragem: A Advocacia Criminal anos de Chumbo”, Org. Deputado José Mentor, iniciativa OAB-SP ••Depoimento no livro “Advocacia em tempos difíceis: Ditadura Militar, 1964-1985”, realização da FGV, coordenação Paula Spieler e Rafael M. R. Queiroz •• Vice-Presidente Honorário da Associação Internacional de Direito Penal, com sede em Paris, desde 1924 •• Demais créditos e homenagens em www.dotti.adv.br e www.professordotti.com.br

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