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Tão importante quanto o “Teste de Integridade”, tratado na coluna anterior, outra das 10 Medidas Anticorrupção propostas pelo Ministério Público Federal é o chamado “confisco alargado”.

Em resumo, trata-se da possibilidade jurídica de o Estado retomar os valores desviados ilicitamente do seu patrimônio ou incorporar valores obtidos pelos condenados de forma criminosa, sem prejudicar o direito de as demais vítimas receberem o que lhes for de direito.

A rigor, essa possibilidade já existia no ordenamento jurídico (art. 91 do Código de Processo Penal), sempre se levando em conta a restituição do patrimônio da vítima (pelo produto ou proveito do crime), mas a prática forense (nos casos de crimes envolvendo valores vultosos) demonstrou que as normas que tratavam do tema, quando passavam pelo filtro da jurisprudência, perdiam sua eficácia, muito pouco servindo para atender a finalidade para qual foram concebidas.

Tais normas serviam a contento para se devolver à vítima singular o bem que lhe fora subtraído, geralmente em crimes contra o patrimônio (furto, roubo, etc.), seja o dinheiro ou qualquer objeto de valor (relógio, carro, jóias, etc.). No entanto, no âmbito da macro-criminalidade, a complexidade e a sofisticação da consumação dos crimes e as novas formas de se proteger os valores angariados de forma criminosa dificultavam sua apropriação pelo Estado, seja pela impossibilidade da exata comprovação do valor decorrente do crime, seja pela dificuldade de se rastrear eficazmente todo o percurso formal dos valores, os quais muitas vezes se misturavam com o patrimônio lícito do condenado ou de terceiros.

Em um caso emblemático acontecido no Município de Maringá, o Prefeito, o Secretário da Fazenda e alguns funcionários foram denunciados e condenados por desviarem cerca de R$ 2,4 milhões dos cofres municipais entre 1997 e 2000. Esse foi o valor que o Ministério Público conseguiu comprovar, através da prova documental. Todas as evidências, no entanto, inclusive as confissões, apontavam para um valor muito maior, algo entre 50 e 100 milhões de reais. O desvio foi estimado pela Gazeta do Povo em cerca de R$ 500 milhões, atualizados até 2010.

Os réus, principalmente o Secretário da Fazenda, compraram diversos bens em nomes de “laranjas”, fizeram doações a familiares e amigos, constituíram empresas em que eram “sócios-ocultos”. Dos cerca de 20 imóveis sequestrados, apenas 8 foram vendidos em leilão até o momento. Os valores arrecadados nesses leilões perfazem R$ 5,5 milhões. Grandes propriedades rurais, notoriamente pertencentes ao Secretário da Fazenda, acabaram permanecendo com as pessoas que cederam seus nomes para registrá-las (“laranjas”), existindo perante o Tribunal vários recursos tencionando levantar sequestros incidentes sobre os demais imóveis. Herdeiros também reclamam parte dos bens do Secretário e há notícias que o ex-prefeito sobrevive com os rendimentos auferidos com as propriedades rurais adquiridas com os valores desviados.

A ação penal relativa aos crimes mencionados se iniciou em 2000, sendo a sentença proferida em 2002. Se à época estivesse em vigor a norma prevendo o “confisco alargado”, certamente os resultados da ação penal seriam infinitamente mais benéficos para a sociedade.

A norma proposta para o “confisco alargado” se aplica às sentenças condenatórias envolvendo um ou mais dos seguintes tipos penais: “I – tráfico de drogas, nos termos dos arts. 33 a 37 da Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006; II – comércio ilegal de arma de fogo e tráfico internacional de arma de fogo; III – tráfico de influência; IV – corrupção ativa e passiva; V – previstos nos incisos I e II do art. 1º do Decreto-Lei nº 201, de 27 de fevereiro de 1967; VI – peculato, em suas modalidades dolosas; VII – inserção de dados falsos em sistema de informações; VIII – concussão; IX – excesso de exação qualificado pela apropriação; X – facilitação de contrabando ou descaminho; XI – enriquecimento ilícito; XII – lavagem de dinheiro; XIII – associação criminosa; XIV – organização criminosa; XV – estelionato em prejuízo do Erário ou de entes de previdência; XVI – contrabando e descaminho, receptação, lenocínio e tráfico de pessoas para fim de prostituição, e moeda falsa, quando o crime for praticado de forma organizada”.

Nestes casos, a sentença condenatória criminal ensejará a perda, em favor da União, “da diferença entre o valor total do patrimônio do agente e o patrimônio cuja origem possa ser demonstrada por rendimentos lícitos ou por outras fontes legítimas”.

Em outras palavras, a sentença condenatória, em se tratando desses crimes graves, gerará uma presunção que atingirá todo o patrimônio injustificado do condenado. A norma presumirá como ilícito e, portanto, confiscável, todo o patrimônio do condenado sem origem comprovadamente lícita.

E o que se deve entender por patrimônio do condenado? Nos dizeres da proposta, é o conjunto de bens, direitos e valores: “I – que, na data da instauração de procedimento de investigação criminal ou civil referente aos fatos que ensejaram a condenação, estejam sob o domínio do condenado, bem como os que, mesmo estando em nome de terceiros, pessoas físicas ou jurídicas, sejam controlados ou usufruídos pelo condenado com poderes similares ao domínio; II – transferidos pelo condenado a terceiros a título gratuito ou mediante contraprestação irrisória, nos 5 (cinco) anos anteriores à data da instauração do procedimento de investigação; III – recebidos pelo condenado nos 5 (cinco) anos anteriores à instauração do procedimento de investigação, ainda que não se consiga determinar seu destino”.

Antes mesmo do trânsito em julgado, ou seja, quando a decisão se tornar irrecorrível, o Ministério Público poderá ingressar com medidas assecuratórias, visando principalmente a alienação antecipada para preservação do valor dos bens e a efetividade do “confisco alargado”.

Após o trânsito em julgado, o Ministério Público terá 2 anos para requerer o confisco dos bens perante o próprio juízo criminal, assegurando-se ao condenado o exercício do contraditório, para que tenha condições de comprovar a origem lícita do patrimônio cuja expropriação for requerida, afastando-se assim a presunção, que é relativa.

Voltando ao caso de Maringá, a norma do “confisco alargado” teria permitido ao Judiciário devolver à vítima grande parte dos valores desviados de seu patrimônio, não obstante a comprovação processual de apenas pequena parte dos desvios, na medida em que as pessoas condenadas dificilmente conseguiriam comprovar a origem lícita da quase totalidade do seu patrimônio. Mais importante ainda, teria sido possível a apropriação dos bens que foram repassados a terceiros por doação ou para dissimular a origem, dificultando o rastreamento. Como tais normas ainda não existem em nosso ordenamento jurídico, a realidade é diametralmente oposta. A maior parte dos valores desviados do Município de Maringá entre 1997 e 2000 não foi recuperada. E para evitar que tais situações voltem a ocorrer é que a sociedade ansiosamente aguarda que o Congresso Nacional aprove todas as medidas contra a corrupção propostas pelo Ministério Público Federal.

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