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Tempos estranhos aqueles em que dois países podiam dividir o mundo entre eles, como fizeram Portugal e Espanha com o Tratado de Tordesilhas, assinado em 1494. Formatada a divisão, as caravelas latinas levaram às novas terras os senhores desse Novo Mundo. Encontraram por aqui pessoas sem a mesma sofisticação tecnológica, que ficaram conhecidas como índios (pois os navegadores supunham terem chegado às Índias).

A vida dos índios não era fácil. Perseguidos, escravizados, contaminados e mortos durante séculos, a população foi dizimada em cerca de 90%, restando apenas uma fração do que outrora eram os ocupantes das Américas. Reza a lenda que Hernán Cortez, por exemplo, costumava crucificar e matar 13 índios todas as sextas-feiras, em homenagem a Cristo e seus 12 apóstolos. Também comuns eram as apostas entre os espanhóis para saber quem conseguiria cortar inteiramente um índio suspenso e amarrado pelas pernas com apenas um golpe de espada.

Relativamente aos índios que habitavam o Brasil, em 1º de abril de 1680 o Rei de Portugal reconheceu através de Alvará Régio que se deveria respeitar a posse dos índios sobre suas terras, por serem “donos naturais”. O Marquês de Pombal instituiu o “Diretório dos Índios” em 1757. Com a vinda da família imperial ao Brasil, em 02 de dezembro de 1808, o Rei Dom João VI declarou em Carta Régia que as terras conquistadas dos índios seriam “terras devolutas”, ou seja, pertencentes à Coroa. A chamada Lei das Terras, de 1850, assegurou o direito dos índios sobre as terras que ocupavam. A Constituição de 1891 não fez nenhuma menção aos direitos territoriais dos índios. Em 1910, surgiu o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), mas que não detinha competência para reconhecer terras indígenas. As Constituições Federais de 1934, 1937 e 1946 tinham disposições assegurando os direitos territoriais dos indígenas A Constituição de 1967, com a EC nº 1/69, foi mais além, reconhecendo as terras indígenas como patrimônio da União e o usufruto exclusivo dos índios sobre as mesmas.

A Constituição Federal de 1988, especialmente em seu art. 231, regulamentou a situação indígena no Brasil, ao reconhecer “aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.

As terras indígenas no Brasil significam aproximadamente 13% do território nacional e 99% das terras se concentram na Amazônia Legal, nas quais vivem cerca de 60% dos índios brasileiros. Por outro lado, 40% dos índios são obrigados a viver no 1% das terras restantes, que se encontram no Centro-oeste, Nordeste, Sul e Sudeste.

Obviamente, esse pequeno percentual das terras indígenas não supre as necessidades dos 40% dos índios que nela habitam. O problema se agrava, porque as autoridades públicas e a população em geral entendem que os índios apenas podem explorar suas terras do modo tradicional, como caçadores-coletores, sendo impensável que possam explorar comercialmente – e de modo mais agressivo – os recursos naturais de seus territórios, vedando-se-lhes tacitamente inclusive a possibilidade de parcerias com empresas privadas.

O resultado desse conflito de interesses é que os índios são premidos a procurar empregos informais ou exercer o comércio de artesanatos nas ruas e praças das cidades, atividade nem sempre apreciada pelos cidadãos, ou, ainda, procurar outras terras nas quais possam tentar sobreviver, consoante seus costumes e tradições.

As outras terras que podem atender às necessidades indígenas, entretanto, geralmente são as Unidades de Conservação, como os parques nacionais, nas quais a presença de seres humanos é proibida para não se prejudicar o ecossistema. Não raramente ocorre de essas unidades de conservação e terras indígenas estarem sobrepostas. É o que acontece, por exemplo, no Parque Nacional do Araguaia, em cujos limites se encontram as Terras Indígenas Inãwebohoná, dos índios Javaé e Karajá. Não se trata de um problema exclusivo do Brasil, pois em cerca de 70% dos parques nacionais dos países em desenvolvimento há conflitos envolvendo as populações em seu interior.

A melhor solução para o impasse seria a criação legislativa de Unidades de Conservação de Uso Sustentável, nas quais apenas os índios possam exercer o manejo da floresta sob a supervisão e acompanhamento das autoridades públicas.

Enquanto não vem a solução legislativa, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Caso Raposa Terra do Sol, fixou importantes premissas para balizar o entendimento dessa matéria. Averbou, por exemplo, que vivemos em uma “era constitucional compensatória de desvantagens historicamente acumuladas, a se viabilizar por mecanismos oficiais de ações afirmativas. No caso, os índios a desfrutar de um espaço fundiário que lhes assegure meios dignos de subsistência econômica para mais eficazmente poderem preservar sua identidade somática, linguística e cultural. Processo de uma aculturação que não se dilui no convívio com os não-índios, pois a aculturação de que trata a Constituição não é perda de identidade étnica, mas somatório de mundividências. Uma soma, e não uma subtração. Ganho, e não perda. Relações interétnicas de mútuo proveito, a caracterizar ganhos culturais incessantemente cumulativos.”

Igualmente importante, reconheceu que “há perfeita compatibilidade entre meio ambiente e terras indígenas, ainda que estas envolvam áreas de “conservação” e “preservação” ambiental. Essa compatibilidade é que autoriza a dupla afetação, sob a administração do competente órgão de defesa ambiental.”

Por fim, o Supremo Tribunal Federal elaborou importantes diretrizes e condicionantes a harmonizar a existência de sobreposição entre terras indígenas e unidades de conservação, dentre as quais:

• “o usufruto das riquezas do solo, dos rios e dos lagos existentes nas terras indígenas (art. 231, § 2º, da Constituição Federal) pode ser relativizado sempre que houver, como dispõe o art. 231, § 6º, da Constituição, relevante interesse público da União, na forma de lei complementar”;

• “o usufruto dos índios não abrange a pesquisa e lavra das riquezas minerais, que dependerá sempre de autorização do Congresso Nacional, assegurando-se-lhes a participação nos resultados da lavra, na forma da lei”;

• “o usufruto dos índios não abrange a garimpagem nem a faiscação, devendo, se for o caso, ser obtida a permissão de lavra garimpeira”;

• “o usufruto dos índios na área afetada por unidades de conservação fica sob a responsabilidade do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade”;

• “o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade responderá pela administração da área da unidade de conservação também afetada pela terra indígena com a participação das comunidades indígenas, que deverão ser ouvidas, levando-se em conta os usos, tradições e costumes dos indígenas, podendo para tanto contar com a consultoria da FUNAI”;

• “o trânsito de visitantes e pesquisadores não-índios deve ser admitido na área afetada à unidade de conservação nos horários e condições estipulados pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade”;

• “é vedada, nas terras indígenas, a qualquer pessoa estranha aos grupos tribais ou comunidades indígenas, a prática de caça, pesca ou coleta de frutos, assim como de atividade agropecuária ou extrativa (art. 231, § 2º, Constituição Federal, c/c art. 18, § 1º, Lei nº 6.001/1973)”.

A situação é evidentemente muito complexa, envolvendo o tênue equilíbrio que deve existir entre índios ameaçados e uma natureza cambaleante, ambos resistindo bravamente na fronteira da extinção. Como as demandas muitas vezes não são resolvidas a contento administrativamente, o Judiciário tem sido chamado com frequência a tentar solucionar o litígio. Cabe ao julgador, diante de tão complexo conflito de interesses, aparentemente contrapostos, seguir as diretrizes do Supremo Tribunal Federal, mas, principalmente, seguir o exemplo da Corte Maior, realizando audiências públicas e uma profunda instrução processual, nivelando perspectivas na busca de uma solução humanitária e ambientalmente justa.

*Anderson Furlan é juiz federal, e foi presidente da Associação Paranaense dos Juízes Federais (Apajufe) em duas gestões.

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