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Todos os anos, na região autônoma de Yulin, em Guangxi Zhuang, na China, acontece o Festival do Cachorro, uma tradição cultural na qual milhares de cães são perseguidos, brutalmente assassinados e servidos como comida. Muitos desses animais são jogados vivos em caldeirões com água fervendo para que a carne fique mais saborosa, devido à grande liberação de adrenalina durante a morte lenta.

Uma vez que o Brasil vem recebendo chineses desde o Império, acentuando-se a imigração a partir de 1950, tendo atualmente cerca de 200 mil pessoas incorporadas à sua população, poderiam os sinobrasileiros exercer no país seus costumes tradicionais, como cozinhar cachorros vivos?

Seria possível, ainda, que qualquer comunidade de brasileiros desenvolvesse uma nova forma de manifestação cultural, consistente em se correr atrás de cachorros, apanhá-los pela cauda e atirá-los no chão? O ordenamento jurídico brasileiro protegeria essa nova manifestação cultural que – a título exemplificativo – poderia ser chamada de “cachorrada”?

A resposta para ambas as indagações é negativa.

No dia 06/10/2017, o Supremo Tribunal Federal (STF), por maioria apertada de votos (6 votos a 5), reafirmou sua antiga jurisprudência no sentido de que a proteção constitucional das manifestações culturais (art. 215) não se sobrepõe à regra constitucional que proíbe a crueldade contra os animais (art. 225, §1º, VIII). Tratava-se da ADI n.º 4.983/CE, ajuizada pelo Procurador-Geral da República, Rodrigo Janot, (e com parecer favorável do Advogado-Geral da União) contra a Lei n.º 15.299/13 do estado do Ceará, que regulamentava a vaquejada como prática esportiva e cultural.

Dificilmente propostas de alteração constitucional visando contornar a decisão da Corte Suprema passariam pelo escrutínio judicial após aprovadas, ainda mais em se tratando de decisão tomada pelo plenário e envolvendo a colisão entre direitos fundamentais

O ministro Marco Aurélio, relator da ADI, resumiu muito bem a questão nos seguintes termos: “[t]endo em vista a forma como desenvolvida, a intolerável crueldade com os bovinos mostra-se inerente à vaquejada. A atividade de perseguir animal que está em movimento, em alta velocidade, puxá-lo pelo rabo e derrubá-lo, sem os quais não mereceria o rótulo de vaquejada, configura maus-tratos. Inexiste a mínima possibilidade de o touro não sofrer violência física e mental quando submetido a esse tratamento. A par de questões morais relacionadas ao entretenimento às custas do sofrimento dos animais, bem mais sérias se comparadas às que envolvem experiências científicas e médicas, a crueldade intrínseca à vaquejada não permite a prevalência do valor cultural como resultado desejado pelo sistema de direitos fundamentais da Carta de 1988. O sentido da expressão ‘crueldade’ constante da parte final do inciso VII do § 1.º do artigo 225 do Diploma Maior alcança, sem sombra de dúvida, a tortura e os maus-tratos infringidos aos bovinos durante a prática impugnada, revelando-se intolerável, a mais não poder, a conduta humana autorizada pela norma estadual atacada”.

De seu turno, o ministro Luís Roberto Barroso, após registrar os antecedentes jurídicos, doutrinários e históricos da defesa dos animais, fixou importantes orientações para o entendimento do caso, quais sejam:

(i) o STF já julgou 4 casos envolvendo a colisão entre a vedação constitucional da crueldade contra animais e a proteção das manifestações culturais (RE 153.531; ADI 1.856.; ADI 2.514; ADI 3.776), destacando-se, quando do julgamento da ADI 1.856, a seguinte passagem: “[e]ssa especial tutela, que tem por fundamento legitimador a autoridade da Constituição da República, é motivada pela necessidade de impedir a ocorrência de situações de risco que ameacem ou que façam periclitar todas as formas de vida, não só a do gênero humano, mas, também, a própria vida animal, cuja integridade restaria comprometida, não fora a vedação constitucional, por práticas aviltantes, perversas e violentas contra os seres irracionais, como os galos de briga (“gallus gallus”)”;

(ii) que, à luz de todos esses precedentes, a regra do art. 225, §1º, VII, “ deve ser considerada uma norma autônoma, de modo que sua proteção não se dê unicamente em razão de uma função ecológica ou preservacionista, e a fim de que os animais não sejam reduzidos à mera condição de elementos do meio ambiente. Só assim reconheceremos a essa vedação o valor eminentemente moral que o constituinte lhe conferiu ao propô-la em benefício dos animais sencientes. Esse valor moral está na declaração de que o sofrimento animal importa por si só, independentemente do equilibro do meio ambiente, da sua função ecológica ou de sua importância para a preservação de sua espécie.”;

(iii) a crueldade, “nos termos do art. 225, § 1.º, VII da Constituição, consiste em infligir, de forma deliberada, sofrimento físico ou mental ao animal”;

(iv) a “proteção dos animais contra a crueldade, que vem inscrita no capítulo constitucional dedicado ao meio ambiente, atrai a incidência do denominado princípio da precaução. Tal princípio significa que, na esfera de sua aplicação, mesmo na ausência de certeza científica, isto é, ainda que exista dúvida razoável sobre a ocorrência ou não de um dano, o simples risco já traz como consequência a interdição da conduta em questão. Com mais razão, deve este relevante princípio jurídico e moral incidir nas situações em que a possibilidade real de dano é inequívoca, sendo certo que existem inúmeras situações de dano efetivo”;

(v) “se os animais possuem algum interesse incontestável, esse interesse é o de não sofrer. Embora ainda não se reconheça a titularidade de direitos jurídicos aos animais, como seres sencientes, têm eles pelo menos o direito moral de não serem submetidos a crueldade. Mesmo que os animais ainda sejam utilizados por nós em outras situações, o constituinte brasileiro fez a inegável opção ética de reconhecer o seu interesse mais primordial: o interesse de não sofrer quando esse sofrimento puder ser evitado”;

(vi) “manifestações culturais com características de entretenimento que submetem animais a crueldade são incompatíveis com o art. 225, § 1.º, VII, da Constituição Federal, quando for impossível sua regulamentação de modo suficiente para evitar práticas cruéis, sem que a própria prática seja descaracterizada.”

Os ministros que votaram a favor da constitucionalidade da lei cearense, de seu turno, argumentaram que a vaquejada era uma manifestação cultural tradicional, que, por esse motivo, deveria ser preservada.

Em seu curto voto para desempatar o julgamento, que estava em 5 votos a 5, a ministra Cármen Lúcia, presidente do Supremo Tribunal Federal, foi categórica ao afirmar que “[s]empre haverá os que defendem que vem de longo tempo e se encravou na cultura do nosso povo, mas cultura também se muda, e muitas foram levadas nessa condição até que se houvesse outro modo de ver a vida, que não somente a do ser humano”.

Com essa decisão, o Supremo Tribunal Federal terminou por proibir, em todo o Brasil, a prática sádica, travestida como esporte ou manifestação cultural, de se perseguir, puxar pelo rabo e atirar ao chão um bovino, assim como já havia banido da sociedade brasileira as manifestações conhecidas como “farra do boi” e as rinhas de galo. Qualquer pessoa flagrada praticando tais formas de crueldade deve ser presa em flagrante, em razão do art. 32 da Lei n.º 9.605.

Não tardou para que os empreendedores da atividade e os “esportistas” se mobilizassem para lutar contra a decisão. Manifestações estão sendo marcadas em vários lugares, inclusive uma carreata até Brasília, e alguns parlamentares tencionam apresentar uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) para que a prática da vaquejada seja “constitucionalizada”.

Seria possível, ainda, que qualquer comunidade de brasileiros desenvolvesse uma nova forma de manifestação cultural, consistente em se correr atrás de cachorros, apanhá-los pela cauda e atirá-los no chão?

Dificilmente propostas de alteração constitucional visando contornar a decisão da Corte Suprema passariam pelo escrutínio judicial após aprovadas, ainda mais em se tratando de decisão tomada pelo plenário e envolvendo a colisão entre direitos fundamentais.

Assim como aconteceu anteriormente, especialmente nos movimentos que resultaram no fim da escravidão e na emancipação feminina, o que realmente parece estar em causa é a ultrapassagem de um umbral ideológico, a transição de um modelo de entendimento humano baseado na completa desconsideração pelos interesses dos demais seres vivos para um modelo baseado em uma maior consideração e respeito pelos animais não-humanos.

O resultado desse embate ideológico, que vem sendo travado no âmbito das instituições e no próprio seio da sociedade, esse embate que sacode corações e mentes, desafiando arraigadas convicções, certamente contribuirá para o despertar de uma civilidade mais inclusiva e humana, acolhendo ao invés de apartar, cuidando ao invés de maltratar, pois, como disse Milan Kundera, “a verdadeira bondade do homem só pode manifestar-se em toda a sua pureza e em toda a sua liberdade com aqueles que não representam força nenhuma”. E, de forma alentadora, a decisão do Supremo Tribunal Federal a respeito da vaquejada indica que a sociedade trilha o melhor caminho.

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