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1. Um notável e histórico precedente

No dia 5 de maio, o Ministro Teori Zavascki, do Supremo Tribunal Federal,adotou uma medida cautelar excepcional ao determinar a suspensão do exercício do mandato do Deputado Eduardo Cosentino da Cunha e, por consequência, da função de Presidente da Câmara dos Deputados.

A decisão, inédita na história jurisprudencial da maior corte judiciária nacional, atendeu requerimento do Procurador-Geral da República, Rodrigo Janot, sustentando que o referido parlamentar estaria utilizando-se do cargo de deputado e da função da presidência “em interesse próprio e ilícito, qual seja, evitar que as investigações contra si tenham curso e cheguem a bom termo, bem como reiterar práticas delitivas, com o intuito de obter vantagens indevidas” (Ação Cautelar 4.070, DF).

O afastamento de Eduardo Cunha, das altas e relevantes atividades de presidente da Casa Legislativa, já era esperado há algum tempo em face da ação penal instaurada pelos crimes de corrupção passiva (CP, art. 317) e lavagem de dinheiro (Lei nº 9.613/1998, art. 1º) e, principalmente, pelas diversas investigações criminais levadas a cabo pela Polícia Federal no contexto da Operação Lava Jato.

2.O material de incriminação

O pronunciamento judicial, longamente fundamentado, aborda em 73 (setenta e três) páginas um minucioso levantamento de infrações administrativas e criminais procedido pelo Procurador-Geral e atribuídas a Eduardo Cunha. Para evidenciar a gravidade da situação é oportuno indicá-las: (a) apresentação, por meio da Deputada Solange Almeida, de requerimentos na Comissão de Fiscalização Financeira e Controle da Câmara dos Deputados (CFFC), com a finalidade de “pressionar Julio Camargo a honrar o pagamento de propina”, decorrentes de contratos da Petrobrás; (b) elaboração de “dezenas de requerimentos no Congresso Nacional, patrocinados por Eduardo Cunha e seus correligionários, a pedido de Lúcio Bolonha Funaro […] com o intuito inequívoco de realizar um ataque claro e sistemático às empresas do Grupo SCHAHIN” (fl. 31), tendo em vista disputa judicial sobre a responsabilidade no rompimento da barragem da Pequena Central Hidrelétrica (PCH) de Apertadinho, em Rondônia; (c) “elementos demonstram que Lúcio Bolonha Funaro, direta ou indiretamente, pagou veículos no valor de pelo menos R$ 180.000,00 em favor da empresa de Eduardo Cunha” (fl. 64); (d) entre 29 de agosto e 11 de setembro de 2014, Júlio Camargo teria concedido vantagem indevida a Eduardo Cunha por meio de utilização de horas de voo em sua aeronave, sendo identificados como alguns dos passageiros, além do próprio Eduardo Cunha, Lúcio Bolonha Funaro; (e) convocação da advogada Beatriz Catta Preta, que atuou em diversos acordos de colaboração premiada, para prestar depoimento na CPI da Petrobras em 2015, com a finalidade de constranger e intimidar (fl. 67), uma vez que a “aprovação ocorreu, curiosamente, após Júlio Camargo, então cliente de Beatriz Catta Preta, prestar depoimento à Procuradoria-Geral da República, no qual revela que Eduardo Cunha recebeu parte da propina relacionada aos navios-sondas vendidos pela Samsung à Petrobras” (fl. 68); (f) “contratação da KROLL, empresa de investigação financeira com atuação controvertida no Brasil […] por R$ 1.000.000,00 supostamente para auxiliar na investigação dos trabalhos da CPI. Contudo, pelo que se extrai do relatório final apresentado pela empresa, o foco do trabalho não foi apurar a autoria e materialidade dos crimes praticados contra a Petrobras, mas sim tentar descobrir algo que, numa eventualidade, possa comprometer os acordos de colaboração premiada firmados no âmbito da Operação Lava Jato (revelando, assim, total desvio de finalidade pública, salvo beneficiar os criminosos envolvidos nos fatos, especialmente Eduardo Cunha) ” (fl. 76); (g) apresentação de requerimentos na CPI da Petrobras de convocação e quebras de seus sigilos bancário, fiscal, telefônico e telemático, “genéricos, sem indicar qualquer elemento concreto” (fl. 89) em face da ex-esposa, da irmã e das filhas de Alberto Youssef; (h) tramitação do Projeto de Lei 2.755/2015, de autoria do Deputado Federal Heráclito Fortes, aliado de Eduardo Cunha, que “visa impedir que um Colaborador corrija ou acrescente informações em depoimentos já prestados” (fl. 94), exatamente o que foi feito por Julio Camargo, ao se retratar e incriminar Eduardo Cunha como beneficiário de vantagens indevidas decorrentes de contratos da Petrobras e a determinação de “Eduardo Cunha, […] na condição de Presidente da Câmara, [...] que o referido projeto tenha apreciação conclusiva pelas Comissões de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado e pela Comissão de Constituição e Justiça. Isso implica que, caso o projeto seja aprovado nestas duas comissões, nas quais Eduardo Cunha conta com maioria aliada, o projeto não precisará ser submetido à votação pelo plenário” (fl. 95-96); (i) Eduardo Cunha, também na condição de Presidente da Câmara, “e, nesta qualidade, podendo definir a pauta da Casa, colocou em votação projeto de lei que poderia eximi-lo da responsabilidade pela manutenção de valores não declarados no exterior (Projeto de Lei 2.960/2015) ” (fl. 97); (j) exoneração de “Luiz Antônio Sousa da Eira, então Diretor do Centro de Informática da Câmara dos Deputados, em razão deste ter reconhecido a autoria dos Requerimentos formulados por Eduardo Cunha” (fls. 97-98); (k) retaliação aos “membros da bancada do PSOL, responsáveis por apresentar, junto com o partido Rede Sustentabilidade, [...] representação pela cassação de Eduardo Cunha perante o Conselho de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara dos Deputados” (fls. 100-101); (l) apreensão de documento “que aponta para o recebimento de vantagens indevidas por parte de Eduardo Cunha para aprovar medida provisória de interesse do Banco BTG” (fl. 102), assim como a existência de “indícios da participação de Eduardo Cunha, direta ou indiretamente (por meio de interpostos parlamentares aliados dele) em medidas provisórias, apresentando emendas que visavam favorecer os bancos em liquidação e, mais especificamente, André Esteve s: (i) MP 472; (ii) MP 517, (iH) MP 561; (iv) MP 510; (v) MP 627; (vi) MP 608; (vii) MP 668; (viii) MP 627; (ix) MP 675; (x) MP 651 e (xi) MP 688” (fl. 112); (m) centenas de mensagens constantes do celular de Léo Pinheiro, dirigente da empresa OAS, indicam que “projetos de lei de interesse das empreiteiras eram redigidos pelas próprias empreiteiras, que os elaboravam, por óbvio, em atenção aos seus interesses espúrios, muitas vezes após a consultoria de Eduardo Cunha. Em seguida, o projeto era encaminhado ao Deputado Eduardo Cunha, que apresentava o projeto de interesse das empreiteiras perante o Congresso Nacional diretamente ou por meio de algum dos seus aliados” (fls. 112-113), mediante o pagamento de vantagens indevidas; (n) adoção de “manobras espúrias para evitar a regular atuação de seus pares na apuração de condutas no âmbito da Câmara dos Deputados (da obstrução da pauta com o intuito de se beneficiar)” (fl. 136), com a finalidade de impedir a regular tramitação de representação instaurada contra ele no Conselho de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara dos Deputados; (o) destituição, por intermédio de seus aliados, do Relator da representação que visa a sua cassação, Deputado Fausto Pinato, “exatamente no momento em que ficou claro que o Conselho daria continuidade ao processo” (fl. l43); (p) ameaças e oferecimento de vantagens indevidas ao Deputado Federal Fausto Pinato, em razão de sua atuação como relator da representação contra Eduardo Cunha no Conselho de Ética da Câmara.

3.Os fundamentos normativos da medida

Afirmando que “os poderes da República são independentes entre si, mas jamais poderão ser independentes da Constituição”, o Ministro Zavascki justificou a medida extraordinária com duas disposições normativas: a primeira, de ordem constitucional e declarada no inciso XXXV do art. 5º, no sentido de que “a lei não excluirá a apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” e a segunda, de ordem legal, prevista no inciso VI do art. 319 do Código de Processo Penal: “São medidas cautelares diversas da prisão: I-(...); VI - suspensão do exercício da função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais”. (Redação dada pela Lei nº 12.403/2011).

A singularidade da providência judicial residiu em seu caráter monocrático enquanto o recebimento da denúncia ocorreu pela decisão plenária do STF. Mas, para prevenir qualquer discussão a esse respeito, o Ministro Zavasckisubmeteu aos demais colegas da Corte a sua decisão que foi confirmada por unanimidade de votos.

4.O poder de criação da jurisprudência

Sem dúvida, o julgamento provisório da medida cautelar liminar e a sua manutenção pela maior instância judiciária do país constituem lição histórica de hermenêutica ao destacar o poder criador da jurisprudência. Essa conclusão decorre da seguinte passagem do texto luminoso do Ministro Teori Zavascki: “21. Decide-se aqui uma situação extraordinária, excepcional e, por isso, pontual e individualizada. A sintaxe do direito nunca estará completa na solidão dos textos, nem jamais poderá ser negativada pela imprevisão dos fatos. Pelo contrário, o imponderável é que legitima os avanços civilizatórios endossados pelas mãos da justiça. Mesmo que não haja previsão específica, com assento constitucional, a respeito do afastamento, pela jurisdição criminal, de parlamentares do exercício de seu mandato, ou a imposição de afastamento do Presidente da Câmara dos Deputados quando o seu ocupante venha a ser processado criminalmente, está demonstrado que, no caso, ambas se fazem claramente devidas. A medida postulada é, portanto, necessária, adequada e suficiente para neutralizar os riscos descritos pelo Procurador-Geral da República”. (Os destaques em itálico são meus).

5.A doutrina do mestre imortal

A propósito, Miguel Reale: “O ato de julgar não se reduz a uma atitude passiva diante dos textos legais, mas implica notável margem de poder criador” e salienta que a jurisprudência muitas vezes inova em matéria jurídica “estabelecendo normas que não se contém estritamente na lei, mas resultam de uma construção obtida graças à conexão de dispositivos, até então considerados separadamente, ou, ao contrário, mediante a separação de preceitos por largo tempo unidos entre si. Nessas oportunidades, o juiz compõe para o caso concreto uma norma que vem completar o sistema objetivo do Direito” [1]. Partindo da regra do art. 5º, da LICCiv. [2] : “Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”. Alípio Silveira observa que os magistrados operam uma verdadeira reelaboração legislativa [3]. E, em outra obra, o saudoso penitenciarista acentua que não é só na interpretação propriamente dita, que se abre margem à reelaboração da lei, através de valorações político-sociais. “Na esfera da adaptação da lei ao caso concreto, essa reelaboração também existe. Com a diferença de que, em vez de se concentrar na norma abstrata, geral, ela passa a se desenvolver no âmbito da particularidade, da singularidade, não se limitando a constituir uma dedução lógico-formal da norma abstrata. É unânime, a respeito, a moderna doutrina, sufragada pelo art. 5º da Lei de Introdução”[4].

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[1]Lições preliminares de Direito, São Paulo: Saraiva, 1985, p. 168.

[2] Dec.-lei 4.657, de 04.09.1942. Atualmente LINDB (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro), conforme ementa com a redação determinada pela Lei 12376, de 30.12. 2010

[3] Hermenêutica Jurídica, São Paulo: Editora Leia Livros, s/d, vol. IV, p. 200.

[4]SILVEIRA, Alípio.O papel do juiz na aplicação da lei, São Paulo:Editora Universitária de Direito, Ltda, 1977, p. 10

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* René Ariel Dotti: Advogado; Professor Titular Direito Penal; Vice-Presidente Honorário da AIDP; Comenda do Mérito Judiciário do Paraná; Medalha Mérito Legislativo da Câm. dos Deputados (2007); Corredator do projeto da nova parte geral do CP e da Lei de Execução Penal (Leis 7.209 7.210/84; Membro de comissões de Ref. do Sist. Penal criadas Min. da Justiça (1979 a 2000); Diploma da OAB, Câmara dos Deputados e Comissão da Verdade (1964-1985) Secretário Secretaria de Cultura do Paraná (1987-1991).

** As opiniões expressas nas colunas apresentam o ponto de vista de seus autores e não refletem o posicionamento do caderno Justiça & Direito, nem do jornal Gazeta do Povo.

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