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 | Antônio More/Gazeta do Povo
| Foto: Antônio More/Gazeta do Povo
  • FICHA TÉCNICA
  • Currículo: juíza da Vara de Família e, atualmente, ouvidora do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Foi membro do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e vice-presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB). É autora dos livros A vida não é justa e Segredo de Justiça
  • Autores que a inspiram: William Shakespeare e nelson Rodrigues
  • Jurista que a inspira: Luiz Edson Fachin
  • O que está lendo: Quer casar comigo?, de John Updike. Natureza Humana: Justiça vs. Poder: O debate entre Noam Chomsky e Michel Foucault
  • Nas horas vagas:
    gosta de ir ao teatro
    e ao cinema

A juíza carioca Andréa Pachá juntou a experiência vivida no Judiciário com sua alma de artista para escrever relatos que refletem litígios comuns e dramáticos vivenciados nas varas de família e conflitos de relacionamento. Seu primeiro livro de crônicas, A vida não é justa, foi um sucesso não somente entre operadores do direito, mas atingiu leitores de diferentes perfis e chegou à marca de 30 mil exemplares vendidos. A obra vai virar peça de teatro e teve os direitos comprados pela Rede Globo para a produção de uma série de TV. Agora, Andrea está lançando sua segunda obra, Segredo de Justiça, em que conta mais experiências do direito de família e também histórias que vivencia na vara de sucessões. Segundo ela, as crônicas são ficcionais, mas inspiradas em situações recorrentes. Essas histórias mostram como os amores e dores são parecidos, a ponto de pessoas que nunca passaram pela vara em que a juíza trabalha pensarem que tiveram sua história contada. Andrea esteve em Curitiba na semana passada para dar uma palestra no Centro Universitário Unibrasil e concedeu uma entrevista para o Justiça & Direito.

Como é o seu processo de produção literária?

Esse processo foi muito longo. Desde que comecei a trabalhar com vara de família não teve um dia que eu não saísse de lá com uma história pronta na cabeça. É impressionante como a realidade surpreende e eu ficava atenta, ouvindo de maneira fascinada. Os conflitos eram muito parecidos e as pessoas eram profundamente diferentes. Assim, comecei a juntar histórias. Depois, iniciei um exercício de escrever utilizando a terceira pessoa; contava a história de uma juíza assistindo as audiências. Trabalhei os textos. O Alcione Araújo, que era um amigo e prefaciou [meu primeiro livro] A vida não é justa, leu e disse “você está com muito medo de contar essas histórias, isso não vai funcionar. Escreva em primeira pessoa”. Dessa forma, reescrevi tudo utilizando a primeira pessoa e sem uma ordem cronológica e um roteiro específico. As histórias apareciam pra serem contadas.

O processo de escrita do primeiro livro até a publicação durou quanto tempo?

Acho que oito anos.

E como você decidiu publicar?

Eu não tinha ideia se as histórias alavancariam algum interesse do leitor. Para mim era ótimo. Era quase uma forma de organizar as minhas reflexões e pensamentos para julgar a matéria – você pode ver que o livro é confessional até, já que apareço angustiada muitas vezes. O processo da escrita não foi fácil. E eu não sabia se publicaria ou não. Então, comecei a publicar no Facebook e elas começaram a circular uma maneira incontrolável. E o Mauro Ventura, jornalista d’O Globo, viu essas histórias circulando e me convidou para fazer a coluna Dois cafés e a conta, em julho de 2012. Quando ele me chamou, já estava com várias histórias prontas e ainda não tinha editora. Depois, liguei para um amigo que era vice-presidente da Ediouro na época e falei que estava indo dar uma entrevista, que estava com o livro pronto, e disse : “posso falar que o livro vai sair?”. E ele respondeu que sim, mesmo sem ter visto o livro ainda. Foi assim tudo começou. E já estava pronto, foi muito rápido. Saiu no fim de 2012. Quando comecei a publicar as histórias eu tinha meus amigos pessoais. Uma rede de 700 pessoas. Hoje são 13 mil pessoas no Facebook. É muita gente.

O segundo livro teve o mesmo ritmos de trabalho?

No segundo livro, trabalhei com uma rotina mais preparada. Obriguei-me a escrever duas horas por dia. Era uma coisa de determinação. Percebi que não é escritor quem tem um projeto pra escrever. É escritor quem escreve. E é um processo muito desgastante, doloroso e que demanda tempo.

Seus textos são enxutos. Você escreve e reescreve?

Muitas vezes. E é a parte de que mais gosto, quando depois de contada a história inteira você começa a ajustar e a ‘bordar’ as partes. Pude fazer isso de uma maneira muito prazerosa. Então, eu escrevo diariamente, mesmo quando não estou preparando livro para publicar. Diariamente escrevo. Ou uma postagem que publico nas redes sociais. Ou uma coisa para o meu diário. Escrever é um processo natural para mim.

E você tem um cuidado em dizer no livro que as histórias são muito parecidas, mas que o sigilo é mantido. Houve cobrança de algumas pessoas que acharam que foram retratas?

Isso foi uma coisa tão curiosa. Não encontrei ninguém [que reclamasse] porque as histórias são ficcionais. Mas encontrei muita gente que tinha certeza de que a história era sobre ela. Por exemplo, recebi um e-mail de uma leitora do Amapá, dizendo que tinha certeza que eu tinha escrito aquilo porque conheci a vida dela. As pessoas se identificam nos conflitos. Recebi cobrança de pessoas que me paravam na rua para perguntar o motivo de as histórias delas não estarem no livro. Isso foi curioso.No lançamento do primeiro livro, teve um processo muito complicado. Lembrava bem da pessoa e ela foi à noite de autógrafos para perguntar se a história dela estava no livro. Eu não tinha colocado, tudo o que era possível identificar eu não contei.

Então você junta várias semelhanças que acontecem e molda histórias ficcionais?

Exatamente. Várias cenas. Porque esse olhar de roteirista me traz um pouco essa possibilidade de observação quando estou julgando. Fico sentada numa mesa e as pessoas passam. Então você tem um olhar de lente. Em alguns dias eu queria ter uma câmera comigo. Pois achava que não conseguiria descrever a história de tão fascinante. Eu fico num lugar onde é muito fácil perceber as personagens.

Você tem alguma história favorita?

Uma cena, que para mim é a melhor história dos dois livros, é a de uma mulher bem idosa que vai à audiência de divórcio da filha levar flores para ela. Essa cena foi tão forte. E a história [no livro] não é a história desse casal que se separou com essa senhora lá, mas a cena ficou muito marcada. A partir dessa cena construí uma história que poderia ter um desfecho com essa cena. Adorei ter conseguido contar essas histórias.

Como não endurecer ao ver as cenas se repetirem. E como não se abalar também?

Acho que a gente se abala. Endurecer eu não consigo. Sou juíza há 21 anos e hoje trabalho numa vara com sucessão e interdição. E estava falando sobre isso com uma estagiária que estava lá há pouco tempo. Ela saiu da audiência devastada e eu também. Não tem jeito, nós somos humanos. Não tem jeito de não se envolver de alguma maneira. Acho que você tem mecanismos para pessoalmente ter uma proteção. Eu não saio dali desesperada. Compartilhar a dor e se colocar no lugar do outro não é uma coisa que te deixa vulnerável se você cuida disso. Eu faço terapia, acho que precisa ter um cuidado.

E a escrita te ajuda?

Muito. Às vezes leio as histórias e penso que precisava de uma catarse para compreender o que estava acontecendo. E o que acho que foi a grande curiosidade das pessoas: a fantasia com a justiça. Especialmente com a justiça de família. As pessoas vão à vara de família esperando que o amor seja restabelecido – e não existe juiz no mundo que faça isso. A expectativa da justiça, com a vara de família, é a expectativa do amor acontecendo outra vez. E aí é muito frustrante você se colocar no lugar que as pessoas esperam que você dê a solução para a angústia sendo que ela não tem solução. Mas você entender como esse processo funciona pode ajudar as pessoas. Então, eu nunca me coloquei – como juíza da vara de família – no lugar de julgar moralmente nenhum dos conflitos que aparecem na decisão. Juiz de família pode interferir na medida de solução de um casamento que acabou. Com quem ficam os filhos; quem é o responsável pelo pagamento da pensão; quem ficará com a guarda; como vai se realizar a visita. Isso tudo depende de uma decisão do juiz. Mas as formas como as pessoas escolhem viver não têm nenhum vínculo com o Estado e não tem nada pior do que um juiz que acha que é parâmetro moral da vida dos outros. Acho que nós temos que ter um respeito profundo pelas escolhas de qualquer pessoa.

No livro Segredos de Justiça você também trata da questão do idoso que ainda é muito esquecido na nossa sociedade...

Eu preparei um trabalho sobre a velhice na Justiça, porque esse é um fenômeno que em breve vai virar pauta do Judiciário. A população está envelhecendo, a gente não tem se preparado para acolher as demandas da velhice. Nós já temos, hoje, uma geração de velhos com pais velhos e as questões da previdência, da memória, os direitos à moradia e à saúde. Toda essa demanda vai parar na Justiça. Então, a gente precisa começar a se organizar. Em 2050, 23% da população será composta por idosos. É uma população muito grande. E os conflitos são de todas as ordens, tanto os conflitos decorrentes do patrimônio – quando o idoso tem dinheiro – quanto os conflitos decorrentes do abandono – quando o idoso não tem dinheiro. Também tenho começado a trabalhar alguns textos sobre a velhice, que é quase uma conversa com o filósofo Cícero, que identificava os quatro principais problemas da velhice.

Quais são os principais problemas?

A gente está passando pelos problemas que ele identificava e outros que a tecnologia trouxe. A indústria da medicação, do prazer e hoje é possível um homem de 75 anos, casar com uma mulher de 30 anos e ter filhos. E como a gente constrói uma rede de proteção par a mulher dele que também teria esse direito, mas que não tem acesso à medicação da virilidade e nem tem um projeto de vida de envelhecer com alguém mais novo. Há uma rede de mulheres que estão envelhecendo sozinhas sem escolherem a situação. É um fenômeno social que precisa ser trabalhado. De que maneira a gente pode recompor a divisão do patrimônio e ser menos injusto? Temos que começar a pensar nessas alternativas.

Você foi roteirista de cinema e trabalhou com teatro. Como isso te influencia?

A minha trajetória até à magistratura não é muito linear. Me formei em Direito em 1985, advoguei alguns anos, resolvi que não ia querer trabalhar com direito e fui fazer um curso de roteiro de cinema. A partir desse curso, nós montamos um grupo que era orientado pelo Alcione Araújo e durante cinco anos nos reuníamos toda segunda-feira em sua casa – éramos um grupo muito eclético, com engenheiros, roteiristas, produtores de cinema e médicos. E fizemos, durante o período, a leitura de alguns clássicos da literatura brasileira e universal. E a minha formação foi muito rica nesse período. Acredito que se eu não tivesse tido essa formação possivelmente não teria o olhar que eu tenho para a justiça hoje. O cinema acabou na época do governo Collor. Eu não tinha muita perspectiva em continuar na área e resolvi trabalhar com teatro. Trabalhei com o Rubens Corrêa e Aderbal Freire Filho, fazíamos peças de autores nacionais que escolhíamos, produzi um festival internacional de teatro de rua. No final, quando estava casada e pensei em ter filhos, percebi que precisava de uma profissão que tivesse vontade de trabalhar e que me desse estabilidade. Resolvi estudar e fazer concurso. E o direito de alguma forma sempre esteve presente em minha vida. Aí fiz o concurso com esse olhar. Com um olhar de todas essas histórias. Acho que essa experiência foi fundamental para ser a juíza que hoje sou e ter o olhar que tenho para os conflitos que chegam à vara de família e agora na vara de sucessões.

Você esperava essa repercussão do primeiro livro?

Eu imaginei que fosse ficar restrito no ambiente jurídico, mas ele transbordou. O primeiro livro teve mais de 30 mil exemplares vendidos. O retorno que tenho é muito legal. Recebo e-mails de pessoas encantadas com as possibilidades de poder trabalhar de uma forma mais humana no mundo do direito. Acho que foi uma forma de mostrar que não é tão burocrático o ambiente que a gente trabalha. As pessoas concebem uma imagem do Judiciário muito negativa, autoritária. Tenho muitos colegas que exercem a profissão de uma maneira humana e horizontal e isso não aparece porque o peso da instituição é muito grande. Então, quando você consegue fazer com que as pessoas percebam o quanto é possível ajustar os conflitos no ambiente do judiciário é muito legal. Acho que isso se reverte num olhar positivo para a própria justiça. E para mim foi surpreendente e muito emocionante, porque o relato que eu recebi a partir do livro dava para escrever outro livro. Acho que encontrei uma forma de escrever e encontrar essas histórias que foi muito verdadeira e afetiva. A sensação que eu tenho quando recebe o retorno é que as pessoas estão à vontade para abrir o coração. O Aderbal Freire Filho, que escreveu a orelha do livro, tem um programa chamado A Arte do Artista, na TV Brasil, e ele me apresentam no programa como a especialista do fim do amor. E eu fiquei arrasada com essa apresentação. E ele disse que poderia ser uma coleção de textos para ficar no “museu do fim do amor”. E eu não tinha percebido. É a história do fim do amor, mas não é a história do fim da vida. Porque existem muitas possibilidades a partir do fim.

Colaborou: Victor Hugo Turezo

Vida Pública | 04:15

Crônicas do direito de Andréa Pachá

Juíza trouxe experiência das varas de família para livros de crônicas, o primeiro deles se tornou best seller e vai virar série de TV.

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