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No último dia 20 de março, foi celebrado o Dia Internacional da Felicidade. A data, celebrada todos os anos, foi proclamada pela Assembleia Geral da ONU em 2012. A resolução da ONU não cria obrigações para os países-membros, mas seu tema evoca as crescentes discussões sobre a existência de um “direito à felicidade”, seu alcance jurídico e como os tribunais poderiam aplicá-lo em casos concretos. Países tão díspares quanto Japão, Nigéria, Butão e Coreia do Sul já citam esse direito em suas constituições. No Brasil, também há um movimento para que a felicidade seja reconhecida como direito.

O advogado Saul Tourinho Leal, doutor em Direito pela PUC-SP, escreveu a primeira tese sobre o tema no Brasil, defendida no final de 2013. Para ele, a felicidade tem sido não só constitucionalizada, mas se espalhado por leis e inspirado políticas públicas ao redor do mundo. Embora não haja a menção ao termo “felicidade” na constituição brasileira, a “qualidade de vida” e o “bem-estar” constam do seu texto. Para o advogado, a escolha das palavras pelo constituinte não exclui a existência de um direito à felicidade, em suas dimensões objetiva, concretizada pelos direitos sociais, e subjetiva, que é o que chamamos propriamente de felicidade. “O que se discute hoje é se seria o caso de explicitar isso na constituição”, diz.

A menção mais explícita ao direito à felicidade, no Brasil, veio de um voto no Supremo Tribunal Federal (STF). No dia 5 de maio de 2011, o ministro Celso de Mello proferiu seu voto reconhecendo a união estável entre casais do mesmo sexo. Entre os fundamentos de sua decisão, além dos princípios constitucionais da igualdade, da liberdade, da dignidade e da segurança jurídica, o ministro enxerga um “postulado constitucional implícito que consagra o direito à busca da felicidade”. Porém, não há menção à felicidade na ementa do acórdão do julgamento conjunto da ADI 4277 e da ADPF 132.

Dia da Felicidade

O Dia Internacional da Felicidade foi proclamado por uma Resolução da Assembleia Geral da ONU, em junho de 2012, como parte dos esforços para instigar os países-membros a desenvolverem métodos de aferição do desenvolvimento nacional que captem melhor a importância da felicidade e do bem-estar. O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), por exemplo, utiliza desde 1993 o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), criado pelos economistas Amartya Sen e Mahbub ul Haq como forma de tirar o foco do Produto Interno Bruto (PIB) e da contabilidade nacional e pensar políticas públicas mais voltadas às pessoas.

Controvérsias

Egon Bockmann Moreira, professor da Faculdade de Direito da UFPR, tem ressalvas à existência de um direito à felicidade. “Eu jamais defenderia que a Constituição prevê que as pessoas devem ser infelizes. Mas daí até prever uma aplicabilidade do direito à felicidade, há uma dificuldade, porque a felicidade é um estado de espírito: eu tenho dúvidas se o direito está aí para albergar todas as expectativas possíveis e imagináveis”, questiona. “A partir do momento em que a Constituição for tudo, ela será nada”, completa.

Bockmann Moreira também vê diferenças relevantes entre um suposto direito à felicidade e os demais direitos sociais, quando começaram a ser delineados, o que não permitiria analogias tão precipitadas. “Os direitos sociais eram pré-configurados normativamente. Quando se fala em educação, saúde, habitação e previdência, tem-se uma perspectiva efetivamente objetiva dos direitos que estão sendo assegurados e está-se imputando tarefas objetivas ao Estado”, diz. O professor dá como alerta justamente o precedente do princípio dignidade humana que, a seu juízo, perdeu a objetividade por abuso na sua aplicação.

Saul reconhece a preocupação com a aplicação judicial de um direito à felicidade que fosse explicitamente reconhecido por uma emenda constitucional. “Há um receio quanto a um eventual abuso da utilização desse direito para fundamentar qualquer tipo de decisão (...) Essa é uma preocupação justa, notadamente no Brasil, onde há uma hiperlitigiosidade e milhões de demandas tramitando no Poder Judiciário”, pondera. Para o advogado, no entanto, essa preocupação deve ser enfrentada pela doutrina, discutindo em quais dimensões esse direito deve ser concretizado. Como o princípio da dignidade humana, lembra Saul, felicidade é uma expressão de textura aberta. “Nós devemos nos blindar de possíveis abusos estudando o conceito, definindo seu âmbito de incidência, densificando as discussões sobre o tema, eliminando a possibilidade de uso populista do direito à felicidade, seja pela magistratura, seja pelo mundo da política”, afirma.

Rubens Glezer, professor de direito Constitucional da FGV-SP, vê outro risco na importação do conceito de direito à felicidade para a tradição brasileira. Para ele, esse movimento poderia alimentar a tendência negativa de as decisões judiciais apelarem para noções muito abstratas sem justificar apropriadamente como essas ideias se aplicam aos casos concretos, o que tem sido chamado de “farra dos princípios”. Esse fenômeno tem acarretado a perda de um mecanismo de controle importante sobre o Judiciário, que é a qualidade das justificativas das decisões. “Se se quer defender que o Estado brasileiro se filia à tradição política liberal, o que implica igual respeito e consideração aos diferentes estilos de vida e a concessão de igualdade de oportunidades aos cidadãos, então podemos fazer isso por ferramentas jurídicas mais próximas de nossa tradição, como a noção de autonomia”, completa.

PEC 19/2010

Em 2010, o senador Cristovam Buarque lançou a PEC 19/2010 para alterar a redação do artigo 6º da constituição, que traz o rol dos direitos sociais. Pela proposta, a redação do texto passaria a ser: “São direitos sociais, essenciais à busca da felicidade, a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”. De acordo com o senador, houve um problema de comunicação da proposta que ficou conhecida como “PEC da Felicidade”, uma vez que sua proposta não era garantir que cada pessoa alcançasse a felicidade, mas explicitar o papel dos governantes, por meio da observância dos direitos, na pavimentação do caminho da felicidade. A PEC foi arquivada no final de 2014, mas o senador pretende retomá-la, desfazendo o mal-entendido.

A felicidade na Modernidade

Proclamada em 1776, a Declaração de Independência dos Estados Unidos, em um de seus trechos mais famosos, afirma ser uma verdade auto evidente que todos os homens são criados iguais e com direitos irrenunciáveis concedidos por seu Criador. Entre esses direitos, está a “busca da Felicidade”. Em 1789, os revolucionários franceses fizeram constar de seu maior legado para a história das ideias, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, a expressão “felicidade geral”.

A retórica revolucionária atravessou o Atlântico e chegou até o Brasil quando, em 9 de janeiro de 1822, Dom Pedro I teria proclamado que “Se é para o bem de todos e felicidade geral da Nação, estou pronto! Digam ao povo que fico”. A primeira constituição do país, outorgada em 1824, trazia em seu preâmbulo a constatação de que nosso primeiro imperador jurava o texto às pressas porque seus súditos esperavam logo a felicidade individual e a “geral felicidade política”. A opção da república foi mais casmurra. Nenhuma das constituições desde 1891 falou em felicidade, nem em seus preâmbulos. A carta de 1934, a primeira que positivou os chamados direitos sociais no Brasil, trouxe também em seu texto de abertura a primeira menção a um “bem-estar social”.

As noções de felicidade, bem-estar e qualidade de vida, que os textos políticos e as constituições só anunciam, ora como intenções, ora como normas, são temas candentes na Filosofia Política e na Ética. Segundo o filósofo Franklin Leopoldo e Silva, professor aposentado da USP e autor de Felicidade: Dos Filósofos Pré-Socráticos aos Contemporâneos, a felicidade, na modernidade, é nada menos do que a satisfação de todos os desejos. “Parece uma coisa utópica, mas a realização da felicidade completa seria isto: eu chegar a um ponto em que eu não teria mais nenhuma carência material, afetiva e psicológica”, afirma.

Silva destaca que a felicidade já foi algo muito diferente: “Os antigos, e também na Idade Média, consideravam a felicidade a satisfação de um desejo muito particular e que seria o mais importante de todos: a aquisição da sabedoria, que bastaria para suprir nossas carências”. Para o filósofo, a concepção atual de felicidade, que começou a surgir no século XVII, desemboca no consumo. “A satisfação de todos os desejos, quando você não tem uma hierarquia de desejos, acaba sendo uma adesão ao consumismo”, destaca.

Outra diferença entre antigos e modernos é justamente a noção de direitos individuais, que emergiu e se consolidou a partir do final da Idade Média. Até então, as comunidades tinham prevalência sobre os indivíduos. Na modernidade, as comunidades existem justamente em razão dos indivíduos, que precisam proteger seus direitos, e da coordenação de seus interesses. “Para os modernos, temos individualidade por natureza. Aristóteles, por outro lado, dizia que todo indivíduo que vive só é um Deus ou um bicho”, lembra Silva. De acordo com filósofo, mesmo os direitos sociais, que emergiram durante o século XX, podem ser entendidos como uma extensão dos direitos individuais clássicos, na medida em que se reconheceu a necessidade de suprir algumas carências mínimas das pessoas diante de sociedades mais complexas e problemáticas.

Nesse contexto, o direito à felicidade pode até ser uma novidade formal, mas já é um velho conhecido da Filosofia Política e da Ética. “A ideia de um direito à felicidade surge da suposição de que, se as carências forem supridas, o indivíduo será feliz. Mas isso não é consenso em todas as escolas filosóficas e psicológicas”, completa Franklin.

Conheça a Lei

Trechos da CF/88 que citam “bem-estar” e “qualidade de vida”

Preâmbulo. Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.

Art. 23. Parágrafo único. Leis complementares fixarão normas para a cooperação entre a União e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional.

Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:

IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.

Art. 193. A ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais.

Art. 219. O mercado interno integra o patrimônio nacional e será incentivado de modo a viabilizar o desenvolvimento cultural e sócio-econômico, o bem-estar da população e a autonomia tecnológica do País, nos termos de lei federal.

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

Art. 231. § 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.

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