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A lei que criou o FGTS no Brasil completou em setembro 50 anos, justamente numa época em que se cogita a revisão da forma de remuneração dos valores depositados no fundo. Por se tratar de direito tão caro ao trabalhador e de grande interesse econômico, a matéria passou a repercutir a partir do momento em que se percebeu que a equidade das normas (Leis 8.036/90 e 8.177/91) nunca foi questionada nesse aspecto.

A discussão surge com a aplicação aos saldos do FGTS do mesmo índice de correção monetária que recai sobre a poupança, a Taxa Referencial. Como esta, desde 1999, vem sofrendo redução, deixando de preservar o poder aquisitivo da moeda em face da inflação, expressivas perdas pecuniárias nos saldos do FGTS têm sido apuradas, ao mesmo tempo em que a taxa de juros, de apenas 3% ao ano, mal remunera o capital.

Em 2008, foi apresentado na Câmara dos Deputados projeto de lei para revisão da forma de rendimento do FGTS por meio de um aumento gradativo da rentabilidade. Somente em 2015 o debate avolumou-se e, após aprovação na Câmara, seguiu para o Senado. No Judiciário, o assunto tramita no STJ desde maio de 2013 (REsp 1.381.683, julgado no mês passado, sem análise de mérito), bem como no STF desde fevereiro de 2014 (ADI 5090).

Dentre os argumentos que amparam a necessidade de revisão da norma vigente, estão (a) a impossibilidade de o trabalhador gerir autonomamente a quantia depositada, o que, junto com a depreciação da moeda, violaria o direito de propriedade; (b) a equiparação da desvalorização a um confisco indireto, o que é vedado pela Constituição Federal; e (c) a inconstitucionalidade dos dispositivos legais que fixaram a TR como índice de correção, cuja aplicabilidade diminuiria o grau de eficácia de normas constitucionais de cunho social. Em substituição à TR, cogita-se o INPC ou IPCA, divulgados pelo IBGE e que se mostram adequados à manutenção do poder aquisitivo.

Não se está defendendo que a rentabilidade dos saldos do FGTS não deva melhorar, mas essa mudança não deve se dar pela via judicial.

Entretanto, os saldos do fundo não servem apenas como patrimônio “forçado” do trabalhador. O FGTS é, por definição, instituto de natureza multidimensional, com preponderante fim justrabalhista, o qual se combina harmonicamente a seu caráter de fundo social. Assim, o sistema, que é constituído dos depósitos feitos pelos empregadores e de outras dotações orçamentárias, agrega traços tanto de figura trabalhista quanto de figura afeta às contribuições sociais, o que forma um instituto unitário, conferindo-lhe inquestionável importância para a coletividade, superior à ideia de mera poupança imposta por lei.

No aspecto econômico, eventual mudança na legislação do FGTS deve considerar o potencial impacto negativo. Como 84% daqueles que contribuem com o sistema possuem baixo capital constituído (quatro salários mínimos, em média), poucos detêm saldo suficiente para pagar prestações de financiamento público habitacional, amortizar saldo devedor ou quitar moradia própria. Para que uma dessas situações possa ocorrer, devem ser ofertadas linhas de crédito para o financiamento imobiliário, o que só é possível com a utilização do FGTS. Funciona assim: recursos do fundo, que possuem baixa liquidez, podem ser emprestados com reduzidas taxas de juros a construtoras e bancos públicos, os quais podem repassar esse benefício a adquirentes da casa própria, adequando-se o custo envolvido ao poder de compra da população de baixa renda. Se a correção do FGTS passar a seguir novos critérios com o exclusivo objetivo de repor perdas inflacionárias, isso não apenas implicará aumento na taxa de juros dos empréstimos – o que será transferido aos contratos de financiamento imobiliário – como também pode acarretar desequilíbrio financeiro e atuarial dos contratos existentes, além de desestimular novos contratos e prejudicar o custeio de obras públicas nas áreas de habitação, saneamento e infraestrutura (que contaram, em 2012, com R$ 5 bilhões do FGTS). Em alternativa à utilização de índice superior à TR, propõe-se que parte dos lucros obtidos (em 2014, foram de R$ 12,9 bilhões) seja dividida entre os trabalhadores.

Sob a ótica jurídica, o fato de o saldo do FGTS não poder ser gerido pelo próprio titular não viola o direito de propriedade, na medida em que se trata de um direito de indenização por tempo de serviço (expectativa de direito) e não de um direito em si mesmo (direito adquirido). A restrição de acesso não permite comparar o FGTS a uma conta bancária privada. Também não prospera equiparar a corrosão da moeda a um confisco, pois a suposta diferença de valor entre a TR e a inflação é intangível, já que a incidência daquela decorre de lei. Se a alocação dos recursos do fundo por seu Conselho Curador apresenta um desempenho tal que garanta rendimento melhor do que a aplicação da TR, esse desequilíbrio de rentabilidade por si só não legitima a tese do confisco; até porque o lucro do FGTS possui destinação social específica.

O FGTS é, por definição, instituto de natureza multidimensional, com preponderante fim justrabalhista, o qual se combina harmonicamente a seu caráter de fundo social.

Sobre a alegada inconstitucionalidade dos artigos de lei que fixaram a TR como índice de correção monetária, a não preservação do poder aquisitivo dos saldos do FGTS não ampara tal tese. Além de não existir o pretenso direito fundamental à correção “real e efetiva”, o uso da TR como índice de correção sobre o FGTS decorre de opção legislativa de uma época em que se pretendia a desindexação da economia. Ademais, eventual declaração de inconstitucionalidade por omissão parcial levaria a uma inconstitucionalidade plena, pois nenhum índice seria aplicado, causando de vez a estagnação do valor da moeda. Mesmo que assim não fosse, a escolha de um dentre uma infinidade de índices possíveis para substituir a TR equivaleria a preencher lacuna legislativa pela via jurisdicional, em afronta ao princípio da separação dos poderes. O STF, inclusive, mesmo já tendo decidido que a TR não serve como índice de correção monetária, por não acompanhar a inflação (ADI 493 e 4425), não declarou inconstitucionais as normas.

Não se está defendendo que a rentabilidade dos saldos do FGTS não deva melhorar, mas essa mudança não deve se dar pela via judicial. O socorro à jurisdição constitucional, nesse caso, mais expõe a deficiência do Legislativo em deliberar democraticamente (com ajustes e compensações políticas) sobre projetos de lei marcados por conflito de interesses do que caracteriza o simples manejo do direito de ação.

O caráter multidimensional e social do FGTS desmantela a falsa ideia de que o sistema seja voltado apenas para os trabalhadores individualmente considerados, razão pela qual a lei não pode ser alterada sem o comedimento que o processo legislativo exige. A esfera política é e sempre será o terreno mais fértil para equilibrar as visões antagônicas, almejando, senão um consenso, uma solução conciliatória. Com a palavra, o Senado Federal.

Rafael Netto Arruda, analista judiciário do TRT-PR, foi o vencedor do concurso de monografia dos 50 anos do FGTS.
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