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O jornal A Gazeta, do Espírito Santo, é alvo de uma série de ações judiciais movidas por policiais militares por causa da charge “Carnaval 2017 ”, publicada pelo cartunista Amarildo na edição do dia 18 de fevereiro. A charge mostra o encontro de um policial fantasiado de ladrão e de um ladrão vestido de policial, que, armado, anuncia o assalto. O caso reacende as discussões sobre liberdade de imprensa e direito à honra, e traz à tona a possibilidade de assédio à atividade jornalística por meio da litigância em série.

Até o dia 22 de março, já havia cinco ações com alegação de danos morais e pedido indenização, quatro delas com conteúdo idêntico, ajuizadas pela mesma advogada, mas de policiais diferentes. O juiz Alexandre de Oliveira Borgo, da Serra (ES), negou os pedidos liminares das quatro ações de conteúdo idêntico. O magistrado considera que “a charge demonstra um contexto de carnaval, uma data comemorativa em que as pessoas se fantasiam de determinados personagens reais e da ficção” e conclui: “Aparentemente não vislumbro em cognição sumária qualquer ofensa direta à dignidade do autor nem à categoria dos policiais, eis que a charge não se dirige diretamente ao autor nem à categoria mas apenas relata uma situação cotidiana e se refere especificamente a dois personagens específicos e fictícios e em período de carnaval”

Uma mensagem de texto divulgada por WhatsApp conclama os policiais a entrarem com “ação de indenização conjunta” contra o Grupo A Gazeta devido a “inúmeras notícias tendenciosas com fulcro em deturpar luta digna e legítima de nossa nobre e valorosa categoria” e à charge publicada, que seria o ápice da “tentativa maquiavélica” do jornal contra os policiais.

Em uma mensagem de áudio enviada em um grupo de policiais também no WhatsApp, um homem os incita a ajuizarem ações: “para que ela (a ação) ganhe força, legitimidade e poder, é necessário que os policiais militares entrem com a causa (...) Quanto maior for o número de adeptos, maior será a chance de vitória. Estamos num universo entre nove e dez mil policiais militares”. A mensagem de texto traz ainda um contato por e-mail e por telefone, o que levou a OAB-ES a instaurar um processo ético para averiguar eventual captação irregular de clientes por parte dos advogados que ingressaram com as ações.

Em nota, a Associação Nacional de Jornais (ANJ), a Associação Nacional de Editores de Revistas (ANER) e a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (ABERT) afirmam que “acompanham com preocupação” o curso das ações movidas pelos policiais. As entidades reconhecem o direito de acesso à justiça, mas repudiam o exercício abusivo deste direito com o objetivo de tolher a liberdade de expressão e a atividade jornalística.

Para Andre Hees De Carvalho, editor chefe d´A Gazeta, as mensagens e as ações ajuizadas até o momento são uma tentativa de retaliação contra o jornal por sua cobertura da greve dos policiais militares no Espírito Santo no mês de fevereiro. “Tudo indica que as ações e as mensagens no WhatsApp são uma reação à cobertura que A Gazeta fez da greve da PM. As mensagens indicam claramente que é uma tentativa de intimidar a imprensa”, afirma o editor.

Ricardo Pedreira, diretor-executivo da ANJ, ressalta essa preocupação: “A Gazeta de Vitória já vinha sofrendo ameaças por policiais militares, havia todo um clima contra a cobertura jornalística que a Gazeta vinha fazendo”.

Ainda não está claro se as ações movidas pelos policiais foram coordenadas ou orientadas por alguma instituição. Procurada pela Gazeta do Povo, a Associação de Cabos e Soldados da Polícia Militar do Estado do Espírito Santo (ACS-ES) não comentou o assunto. Mas, segundo A Gazeta (ES), o cabo Fernando Lopes Lyra, diretor da ACS, relatou que houve policiais que ficaram ofendidos com a charge e que a entidade apoia seus associados.

Não há dano moral

De acordo com o advogado Rodrigo Xavier Leonardo, como a charge não se fixa em pessoas particulares, mas em manifestações arquetípicas, não há ensejo para danos morais. “Não há uma ofensa a pessoas ou à categoria, há uma manifestação humorística que atinge a figura arquetípica”, afirma o advogado. Para Rodrigo, o caso revela certa insensibilidade recorrente das categorias de policiais diante do humor. “Na medida em que buscam uma resposta perante o Poder Judiciário por meio de ações individuais, elas podem representar uma ameaça à liberdade de expressão”, completa o advogado.

Como o direito de acessar à Justiça é abstrato, não pode haver um controle prévio de quais ações chegarão aos tribunais. “As pessoas têm o direito de acessar o Judiciário ainda que não tenham razão. O que vai dizer se as pessoas têm ou não razão é a sentença”. Leonardo relembra o caso de 89 ações individuais movidas por policiais paranaenses contra a Globo por causa de uma representação da categoria na novela Insensato Coração, em 2012. Nenhuma causa foi julgada procedente e alguns policiais foram condenados por litigância de má-fé. Isso revela, na visão do advogado, a importância de o Poder Judiciário dar uma resposta clara em defesa da liberdade de expressão e de imprensa, a fim de impedir tentativas de intimidação dos meios de comunicação.

Para Eugenio Bucci, professor da USP e membro consultivo do Instituto Palavra Aberta, o caso traz à tona mais uma vez uma ideia comum à mentalidade do Estado brasileiro: a de que a imprensa causa os problemas do país. Bucci reconhece que o direito de indivíduos e instituições recorrerem à Justiça diante de uma ofensa é um dos pilares da democracia, mas ressalva que o exercício desse direito pode, às vezes, esconder uma articulação de agentes dos poderes públicos contra a atividade jornalística. “Essas ações, quando vêm de agentes do poder, carregam uma mentalidade autoritária contra a imprensa. Analisadas em conjunto, essas ações revelam um traço de intolerância do Estado brasileiro”, diz Bucci.

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