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Apesar de muito antigos, os registros públicos tomaram forma principalmente na Roma Antiga, onde existiam os cargos de “notarii” e “tabelliones”. A importância desses serviços para a vida em sociedade sempre foi enorme, visto que transmitem segurança jurídica aos cidadãos, tornando indiscutíveis e verdadeiros os atos celebrados (como nascimentos, compras e vendas, transmissões, mortes) e ratificados com a “fé pública”.

Existem no Brasil diversas formas de Registros Públicos: registro civil de pessoas naturais, registro civil de pessoas jurídicas, registro de títulos e documentos, registro de imóveis, registro de propriedade literária, científica e artísticas, além do registro mercantil, como o protesto de títulos (Leis nº 6.015, 8.935 e 9.492). Existem ainda as serventias judiciais, que nada mais são que os cartórios que auxiliam o Poder Judiciário dos Estados na organização do serviço judiciários, como distribuição de processos, autuação, expedição de mandados, autenticações, entre outros (Lei nº 8.935).

Além de tornarem verdadeiros os atos praticados, os registros públicos brasileiros ainda desempenham a importante função de órgãos auxiliares do Estado na fiscalização e arrecadação tributária (ao exigirem o pagamento de tributos como condição para celebração de diversos atos), averbação de obras e prestação de informações ao INSS sobre óbitos (evitando-se pagamento de aposentadorias e pensões a pessoas falecidas).

Sendo serviços públicos, em princípio deveriam ser realizados por servidores públicos. O Brasil, entretanto, adotou um sistema interessante de Registros Públicos. Os serviços são públicos, mas devem ser exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público (art. 236 da Constituição Federal).

Trata-se do melhor e mais lucrativo “negócio” existente no país. A fórmula jurídica grafada no Texto Constitucional significa que o Poder Público autoriza um particular a “vender a fé pública”, ficando com o “lucro” dessa atividade.

Em outras palavras: enquanto os empresários e profissionais liberais brasileiros precisam competir em seus ramos, inovar na criação de produtos e serviços, contratar os melhores profissionais, investir em marketing, traçar estratégias de vendas, enfim, fomentar a produção e circulação de bens e serviços, contribuindo para o aumento do PIB e a melhor distribuição de renda, existem alguns particulares agraciados pelo Estado com o monopólio de um bem de muito fácil comercialização: a fé pública, ou seja, a prerrogativa infalível de atestar, em nome do Estado, a veracidade das informações. E – supremo paradoxo – quanto mais os vendedores da fé pública tiverem razões para exercerem seus ofícios, mais complexa, demorada e cara se torna a atividade dos empresários e profissionais liberais.

Não vai aqui nenhuma crítica pessoal aos denominados “cartorários”. Tendo recebido a delegação de forma legítima e atuando conforme a lei e a Constituição, conheço muitos cidadãos honrados que exercem seu ofício de forma escorreita. As críticas são direcionadas ao sistema normativo que permite a apropriação de vultosas quantias por particulares no desempenho de funções públicas.

Os números não mentem acerca desse fabuloso comércio da fé pública. Acessando a página do Conselho Nacional de Justiça é possível extrair dados acerca da atividade cartorial (www.cnj.jus.br/corregedoria/justica_aberta/?#).

Os primeiros colocados do ranking nacional têm faturamento semelhante ao de grandes empresas. Alguns exemplos:

1º) 9º Ofício de Registro de Imóveis do Rio de Janeiro (últimos 6 meses: R$45.053.757,05) - Média mensal: R$ 7.508.959,50;

2º) 11º Oficial de Registro de Imóveis de São Paulo(últimos 6 meses: R$ 37.368.116,73) - Média mensal: R$ 6.228.019,45;

3º) 15º Oficial de Registro de Imóveis de São Paulo (últimos 6 meses: R$ 30.615.179,09) - Média mensal: R$ 5.102.529,83;

4º) 14º Tabelião Vampré de São Paulo (últimos 6 meses: R$ 25.591.313,15) - Média mensal: R$ 4.265.218,85;

5º) 9º Oficial de Registro de Imóveis de São Paulo (últimos 6 meses: R$ 4.131.694,93;

6º) 15º Ofício de Notas do Rio de Janeiro (últimos 6 meses: R$ 24.553.720,34) - Média mensal: R$ 4.092.286,72;

7º) 4º Registro de Imóveis de São Paulo (últimos 6 meses: R$ 23.449.359,88) - Média mensal: R$ 3.908.226,63;

8º) 14º Oficial de Registro de Imóveis de São Paulo (últimos 6 meses: R$ 22.337.804,02) - Média mensal: R$ 3.722.967,33;

9º) 1º Ofício de Registro de Imóveis e Protestos de Manaus (últimos 6 meses: R$ 19.154.734,37) - Média mensal: R$ 3.192.455,72;

10º) 10º Oficial de Registro de Imóveis de São Paulo (últimos 6 meses: R$ 18.764.273,55) - Média mensal: R$ 3.127.378,92;

A acumulação de verdadeiras fortunas por pessoas físicas é fenômeno que também se repete no Paraná, conforme se pode ver da lista abaixo, com os maiores faturamentos cartoriais do Estado:

1º) 8º Serviço de Registro de Imóveis de Curitiba (últimos 6 meses R$ 6.699.197,97) - Média mensal: R$ 1.116.532,99;

2º) 6º Serviço de Registro de Imóveis de Curitiba (últimos 6 meses R$ 3.534.245,20) - Média mensal: R$ 589.040,86;

3º) 1º Serviço de Registro de Imóveis de Londrina (últimos 6 meses R$ 3.411.257,67) - Média mensal: R$ 568.542,94;

4º) 1º Tabelionato de Notas e 1º Tabelionato de Protestos de Foz do Iguaçu (últimos 6 meses R$ 3.398.721,91) - Média mensal: R$ 566.453,65;

5º) 1º Tabelionato de Protesto de Títulos de Curitiba (últimos 6 meses R$ 3.102.262,92) - Média mensal: R$ 517.043,82;

6º) 2º Serviço de Registro de Imóveis de Curitiba (últimos 6 meses R$ 3.092.824,54) - Média mensal: R$ 515.470,75;

7º) 1º Serviço de Registro de Imóveis de Maringá (últimos 6 meses R$ 2.986.643,58) - Média mensal: R$ 497.773,93;

8º) 2º Tabelionato de Protesto de Títulos de Curitiba (últimos 6 meses R$ 2.961.122,35) -Média mensal: R$ 493.520,39;

9º) 7º Tabelionato de Notas de Curitiba (últimos 6 meses R$ 2.654.100,54) - Média mensal: R$ 442.350,09;

10º) 4º Serviço de Registro de Imóveis de Curitiba (últimos 6 meses R$ 2.555.515,37) - Média mensal: R$ 425.919,22;

11º) 1º Tabelionato de Protesto de Títulos de Maringá (últimos 6 meses R$ 2.491.952,39) - Média mensal: Média mensal: R$ 415.325,39;

12º) 2º Serviço de Registro de Imóveis de Londrina (últimos 6 meses R$ 2.335.356,25) - Média mensal: R$ 389.226,04

Curiosa coincidência, o cruzamento de sobrenomes e parentescos revela, em muitos estados, relações próximas entre cartorários, desembargadores e políticos. A situação sensivelmente se alterou com decisão do CNJ, de 2009, expurgando dos quadros das serventias pessoas que se apossaram dos cargos de forma ilegítima, geralmente sucedendo parentes ou com remoções espúrias. Pela mesma decisão, passou-se a exigir concursos de provas e títulos, além de aumentar a fiscalização sobre os serviços e respectivas arrecadações.

A atuação do CNJ foi um primeiro passo no sentido de se conseguir perceber a realidade da vida cartorial. A transparência quanto à arrecadação e uma maior rigidez na observância das regras de acesso aos cobiçados cargos serviram para trazer à arena de debates a moralidade, necessidade e conveniência do sistema adotado.

A venda da fé pública em regime de monopólio por particulares, permitindo a apropriação de vultosas quantias de recursos públicos por alguns cidadãos, apesar de amparada em lei, revela-se profundamente anti-republicana. Não pode ser republicano um sistema que permite a uns poucos agraciados se tornarem milionários vendendo serviços estatais.

A primeira medida, a mais simples e óbvia, reveladora da seriedade do Estado, é a promulgação de lei federal para limitar a remuneração de todos os titulares de cartórios ao teto do funcionalismo público, que equivale ao subsídio percebido pelo ministro do Supremo Tribunal Federal, devolvendo-se a arrecadação excedente ao Estado – quiçá para fins mais nobres que a ostentação e acumulação patrimonial.

Cumpre à sociedade organizada, imprensa e representantes políticos fomentarem a discussão acerca do modelo de Registros Públicos que se deve adotar no Brasil. O modelo vigente foi necessário em um tempo em que os órgãos, cidades e estados não conseguiam se comunicar, no qual as informações trafegavam de forma física, demorando dias, às vezes semanas, para circularem entre as repartições públicas.

Esse mundo, entretanto, ficou no passado. Atualmente, a tecnologia permite a extinção de todos os livros normalmente utilizados. Os registros podem e devem ser eletrônicos. As certidões seriam dispensáveis, na medida em que qualquer pessoa pudesse ter acesso aos dados oficiais.

Os municípios, responsáveis pela ordenação do território (art. 30, VIII da Constituição Federal), deveriam assumir a função de registrar o domínio. Basta que a União edite lei (art. 22, XXV) determinando que a cada nova transação imobiliária o cidadão leve cópia da matrícula para ser digitalizada no órgão municipal e ali se inicie a cadeia de registros inerentes àquele imóvel. Com as informações necessárias, o valor do IPTU seria mais próximo do valor imobiliário e as informações seriam igualmente compartilhadas para os outros entes federados, aumentando a fiscalização tributária e munindo o município de informações relevantes para a ordenação territorial.

A “firma” (assinatura) precisa ser substituída por sua versão digital, como qualquer senha de banco. Não é difícil imaginar que um órgão estatal, como a Receita Federal, por exemplo, possa criar e gerir os contratos digitais. As partes digitariam o contrato no site da Receita Federal e, juntamente com as testemunhas, assinariam eletronicamente, com suas respectivas senhas (sequer precisam estar fisicamente no mesmo lugar). Qualquer cidadão poderia acessar o sistema, digitar sua senha e firmar o ato ou contrato, deixando gravados em meio eletrônico todos os detalhes da transação. Isso dispensaria a atividade obsoleta de “reconhecer firmas”.

As escrituras também deveriam ser suprimidas. Os advogados deveriam ser responsáveis por confeccionar os contratos, cabendo aos interessados levá-los ou enviá-los eletronicamente ao órgão municipal, que averbaria a matrícula lá arquivada.

A autenticação de documentos que ainda não sejam eletrônicos igualmente poderia ficar a cargo de serviços municipais, mas até que seja implantando um sistema em que os documentos possam ser devidamente arquivados nos registros eletrônicos e qualquer cidadão possa retirar uma segunda via on line ou mesmo ser facilmente constatável a veracidade do documento pelo terceiro interessado, mediante o acesso ao sistema.

Na época do processo eletrônico, todos os cartórios distribuidores deveriam ser extintos. Não existe razão para que os cidadãos sejam obrigados a pagar altos valores para um cartorário “distribuir” um processo. A distribuição do processo eletrônico é feita via computador, de forma randômica, sem qualquer intervenção humana. Pagar a um particular para “realizar” essa atividade revela o anacronismo da situação cartorária brasileira.

Os cartórios de protestos poderiam ser substituídos por um cadastro nacional de inadimplentes, podendo as custas serem recolhidas eletronicamente, assim como o pagamento e o levantamento do título acusado. Qualquer cidadão poderia digitar um CPF ou CNPJ e verificar a situação mercantil de quem quer que seja, ficando, inclusive arquivadas e identificadas as consultas realizadas.

As soluções estão à disposição do Estado brasileiro. Excetuando-se os próprios “donos de cartórios”, talvez muito poucas pessoas sejam contra a reformulação completa da situação cartorial, diminuindo-se a burocracia e banindo os intermediários que se enriquecem vendendo serviços estatais. Só são a favor da burocracia aqueles que se beneficiam dela.

*Anderson Furlan, juiz federal, especialista, mestre e doutorando em Ciências Jurídico-Econômicas pela Faculdade de Direito de Lisboa, autor das obras Direito Ambiental (Ed. Forense) e Planejamento Fiscal (Ed. Forense), além de outros livros e artigos publicados no Brasil e no exterior. Presidente da Associação Paranaense dos Juízes Federais - APAJUFE (2010-2012; 2014-2016). Escreve quinzenalmente para o Justiça & Direito

** As opiniões expressas nas colunas apresentam o ponto de vista de seus autores e não refletem o posicionamento do caderno Justiça & Direito, nem do jornal Gazeta do Povo

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