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Seu nome completo é Carta Magna das Liberdades ou Concórdia entre o rei João e os Barões para a outorga de liberdades da igreja e do reino inglês. Foi pactuada entre 15 e 19 de junho de 1215 pelo Rei João da Inglaterra, comumente conhecido como João Sem-Terra, os barões conflagrados e por clérigos. Não foi redigida com divisões ou parágrafos, mas é geralmente apresentada como sendo composta de preâmbulo e 63 cláusulas. Sete sucessores do Rei João confirmaram a Carta. Permaneceu adormecida por cerca de quatrocentos anos, tendo sido redescoberta, particularmente em função dos trabalhos de Coke, no século XVII. Influenciou poderosamente, nos Estados Unidos, os pais fundadores da república. Seu legado, hoje, está presente em todo o mundo, moldando, particularmente, o núcleo do arcabouço jurídico das democracias ocidentais.

A Magna Carta não se apresentou como um instrumento de delegação de prerrogativas reais, mas, antes, de afirmação de que o poder do rei estaria limitado. Isto porque existem direitos independentemente do consentimento do rei. Mais importante que isso, há o reconhecimento de que o rei se achava naturalmente vinculado pelas próprias normas que editava, de que estava limitado pelo direito da terra (law of the land) e, por isso, também pelos direitos subjetivos dos governados. Cumpre ressaltar que os benefícios da Carta foram, por séculos, reservados somente para as classes de nobres e clérigos, enquanto que a maioria dos súditos ingleses permanecia sem voz. No século XVII, no entanto, dois atos definidores da legislação inglesa – o Direito de Petição (1628) e o Habeas Corpus Act (1679) - foram fundamentados nas Cláusulas 39 e 40 da Magna Carta garantindo, no decorrer do tempo, direito a todos os cidadãos britânicos.

A Magna Carta cuidou de inúmeras matérias, muitas delas com significado meramente conjuntural ou local. As mais conhecidas, todavia, consistiram em notável contribuição para a formação do constitucionalismo. Formam o que se convencionou chamar de golden clauses, garantindo liberdade para a Igreja, proteção da propriedade privada, vedação de tributação sem consentimento (no taxation without representation) - origem do futuro Parlamento -, proporcionalidade das penas, julgamento pelos pares (origem do Tribunal do Júri) e devido processo legal com razoável duração do processo (sim, é verdade!) e enforcement (efetividade). Tais cláusulas estão presentes, reafirmadas e aperfeiçoadas, nas Constituições modernas, formando, ao lado dos demais direitos fundamentais, do rule of Law e da separação dos poderes, o núcleo duro das normas materialmente constitucionais, absolutamente indispensáveis para a caracterização das modernas democracias constitucionais. Num momento em que os países ostentam documentos constitucionais escritos (com a notável exceção, parcial diga-se, do Reino Unido), é preciso separar o joio do trigo. Há Constituições semânticas e Constituições normativas, ensinava Loewenstein. As primeiras, meros instrumentos de poder, documento de organização de ditaduras de todos os tipos, não seguem a trilha do constitucionalismo inaugurado pela Carta Magna. As últimas, sim.

A Magna Carta, portanto, afirma a ideia de governo limitado. Ora, dos princípios do Estado de Direito e da igualdade perante a lei presentes naquele documento, ainda que em forma embrionária, emerge a inspiração para as futuras declarações de direitos humanos, como o Bill of Rights, de 1689, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, e o Bill of Rights dos Estados Unidos, de 1791. No século XX, aparecem outros documentos. O mais famoso foi a Declaração Universal dos Direitos Humanos adotada em 1948, documento que, juntamente com os Pactos de Direitos Civis e Políticos e de Direitos Culturais, Econômicos e Sociais, de 1966, compõe a Carta de Direitos Humanos do Sistema da Organização das Nações Unidas.

Os parágrafos acima são suficientes para explicar a razão pela qual o transcurso dos 800 anos da Magna Carta merecem comemoração. Em 1965, Lord Dening, o mais celebrado juiz britânico do século XX, descreveu a Magna Carta como “o maior documento constitucional de todos os tempos – a fundação da liberdade do indivíduo contra a autoridade arbitrária do déspota”. Não é por outro motivo que a Magna Carta, convém insistir, tem influenciado o pensamento constitucional mundial: - Estados Unidos e França, passando pela Alemanha, Japão, Índia, até a América Latina, a África e o Commonwealth. Por 800 anos, as negações aos princípios básicos da Magna Carta têm resultado na perda de liberdades e na violação de direitos. Ora, no momento em que o mundo passa por problemas terríveis, implicando violação em massa de direitos e agressão aos princípios do Estado de Direito, cumpre reafirmar a herança da Magna Carta, para defender o constitucionalismo democrático e a afirmação eloquente das liberdades.

No que diz respeito ao nosso país, convém reclamar, mais uma vez, a efetividade (enforcement) dos comandos contemplados na Constituição e derivados da secular herança do constitucionalismo inaugurado pela Magna Carta. Esta, certamente, será a maneira mais adequada para comemorar uma efeméride que, por sua importância capital, merece ser festejada também no Brasil.

*Clèmerson Merlin Clève: professor Titular Doutor de Direito Constitucional nas Faculdades de Direito do Centro Universitário UniBrasil e da UFPR. Escreve mensalmente para o Justiça & Direito.

** As opiniões expressas nas colunas apresentam o ponto de vista de seus autores e não refletem o posicionamento do caderno Justiça & Direito, nem do jornal Gazeta do Povo.

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