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 | Luiz Cruz/Agência Brasil/
| Foto: Luiz Cruz/Agência Brasil/

Apesar de o povo brasileiro ser majoritariamente contrário ao aborto (79%, Ibope/2014) e, por isso, o Legislativo jamais tenha ousado tocar na questão, é o STF que avança, a passos largos, a agenda pró-aborto, a pretexto de fazer “interpretações da Constituição” que excluem do “direito à vida” do artigo 5.º a criança ainda por nascer.

No julgamento da ADPF 54, que aprovou, em 2012, o aborto de crianças anencéfalas (com má-formação cerebral), o STF firmou a tese de que a aprovação do aborto atendia à liberdade da mulher (não esclareceu, contudo, sobre a liberdade das meninas abortadas) e que o Estado, por ser laico, não poderia encampar doutrinas religiosas – como se o aborto fosse apenas questão de religião e não tocasse no problema da garantia de qualquer outro direito; afinal, a quem foi abortado foi negada a liberdade de expressão, de crença, a educação...

Mas este acórdão, assim decidido, foi subscrito por todos os atuais componentes do STF, com exceção de Ricardo Lewandowski (que votou contra) e Dias Toffoli (impedido): votaram assim Marco Aurélio, Rosa Weber, Luiz Fux, Cármem Lúcia, Gilmar Mendes e Celso de Mello.

O acórdão sobre o aborto de anencéfalos só foi possível graças a um julgamento anterior: a ADI 3.510, de 2008, que tratou da manipulação de células-tronco embrionárias e na qual o STF definiu o momento em que a vida começa (questão que, em situações normais, seria definida pela natureza). O embrião não seria pessoa porque não teria possibilidade de nascer por si, nem de desenvolver sistema nervoso: ele seria um bem (essa é a palavra utilizada), não uma pessoa.

Dentre os atuais ministros, votaram a favor desta interpretação Cármem Lúcia, Gilmar Mendes e Marco Aurélio; Ricardo Lewandowski também foi contrário.

É evidente que a interpretação conferida ao direito à vida como dependente do sistema nervoso (e não como um direito do ser humano concebido; afinal, da união de um espermatozoide humano com um óvulo humano não surge uma árvore, nem um elefante, mas um ser humano) serviu, depois, para a aprovação do aborto de anencéfalos ao argumento do sistema nervoso precário. Hoje, pelo mesmo, já se discute o aborto em caso de microcefalia (ADI 5.581/DF).

O ministro Luís Roberto Barroso atuou como advogado dos defensores da interpretação pró-aborto nos dois casos. Mais recentemente, no habeas corpus 124.306, por um voto de Barroso, a Primeira Turma do STF chegou mesmo a ir além dos julgamentos anteriores: interpretou que não seria crime o aborto nos três primeiros meses de gestação, por garantia dos “direitos da mulher” (novamente, sem esclarecer sobre os direitos das meninas abortadas). Edson Fachin e Rosa Weber acompanharam Barroso.

E foi assim que uma Turma do STF (sequer o Pleno) descriminalizou o aborto em um habeas corpus (nem mesmo uma ação de constitucionalidade). Se a sociedade já era refém de um Plenário de onze juízes ativistas, a Primeira Turma do STF mostrou que ela pode também ser refém de apenas cinco.

O fato é que, reunindo os três casos mencionados, todos os atuais ministros do STF já se posicionaram a favor do aborto em julgamentos. Dias Toffoli, impedido de julgar nos casos por ter atuado neles como AGU, declarou em entrevista à revista Poder, em 2010, que é a favor da descriminalização do aborto. O único pró-vida no Supremo Tribunal Federal, que votou consistentemente contra o aborto, é o ministro Ricardo Lewandowski. São 9 contra 1.

É evidente que há um desequilíbrio absurdo na questão. Se 79% da população brasileira é contrária ao aborto, mas a sua Suprema Corte é o exato inverso (80% a favor), há um claríssimo descompasso entre o STF e a realidade do país. Não é à toa que os brasileiros demonstram cada vez menos respeito pelo Supremo, com manifestações públicas contra a Corte. STF e Brasil já não falam mais a mesma língua – e não só nessa questão.

Os ministros do Supremo parecem desempenhar uma verdadeira guerra por moldar a sociedade brasileira à luz do que eles próprios entendem como “civilizado”. Não se contentam com a função de aplicar a lei, tal como elaborada pelo Legislativo: criam-na através de “interpretações da Constituição”, alteram o sentido de termos pelo expediente da “mutação constitucional” e, pelo mesmo mecanismo, reformam a Constituição, sem precisar de Emenda. Em tudo isso, a sociedade brasileira se vê sujeita ao cabresto de uma Corte de onze julgadores que, sozinhos, podem ditar-lhe o rumo e “colonizar-lhe” a seu gosto.

Com a abertura de uma vaga no Supremo pelo falecimento do ministro Teori Zavascki, o ativismo judicial e a questão do aborto voltaram ao debate. Largos setores da opinião pública – nos referimos ao povo de verdade, não à opinião sustentada por uns poucos, do interior de bunkers ideológico-midiáticos – defendem que o indicado deveria ser alguém que estivesse em maior sintonia com o povo brasileiro (inclusive, assumidamente pró-vida) e um juiz sem pretensões de ser também legislador.

Dentre os nomes cogitados, o único que parece cumprir os dois requisitos é o do presidente do TST, o ministro Ives Gandra Filho. O conceituado jurista é abertamente pró-vida e acredita que as interpretações pró-aborto do Supremo não são constitucionais. Ives Gandra também é um crítico do ativismo judicial e – tanto academicamente, quanto como juiz – se opõe à ideia de que o Judiciário possa, numa canetada, legislar para mudar a sociedade.

O presidente Michel Temer tem nas mãos a chance única de iniciar uma mudança de rumos no STF: de Corte legiferante, pró-aborto e revolução cultural, para uma Corte menos ativista, mais sintonizada com o povo e desejosa de cumprir sua função de julgadora, não legisladora.

Atualmente, o preto das togas do STF é um preto de luto. Não o luto dos ministros, que se regozijam de estarem “civilizando” uma sociedade, a seu ver, “retrógrada”; mas o luto do povo brasileiro, pelos seus inocentes. O desenvolvimento de uma civilização se mede pelo seu nível de proteção aos mais fracos: os idosos, os doentes, os deficientes, as crianças, os filhos por nascer. Sempre que uma sociedade mais se aproximou da barbárie, estes foram as primeiras vítimas fatais, os “inúteis”.

A cor das togas é o preto, contudo, porque o ofício judicante é visto como um sacerdócio: o juiz morre para o mundo e vive para o seu ministério. Nada mais distante do que acreditar no contrário: que o mundo deva ser moldado à luz de si mesmo.

Taiguara Fernandes de Sousa é advogado e jornalista.
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