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Peso das contratações públicas no PIB nacional oferece oportunidades para empresas se unirem em cartéis como o que a Operação Lava Jato desvendou. | Antônio More/Gazeta do Povo
Peso das contratações públicas no PIB nacional oferece oportunidades para empresas se unirem em cartéis como o que a Operação Lava Jato desvendou.| Foto: Antônio More/Gazeta do Povo

O novo chefe do Departamento de Concorrência da Organização para Cooperação do Desenvolvimento Econômico (OCDE), o português António Gomes, afirma que o cartel ainda vale a pena para as empresas e que há um longo caminho a ser percorrido pelas autoridades da área. Gomes, que assumiu o cargo em novembro, afirma que, assim como no Brasil, as contratações públicas são alvo de conluio e corrupção em vários países do mundo, e que a Operação Lava Jato mostra que a política de leniência está funcionando e que as empresas não estão impunes.

Em entrevista exclusiva ao Broadcast, serviço de notícias em tempo real do Grupo Estado, Gomes faz recomendações para evitar cartéis em licitações, como melhorar regras e editais e treinar funcionários na ponta para identificar indícios de conluio. Ele também defende maior cooperação entre os países para combater os cartéis internacionais e diz que a OCDE está preocupada com o protecionismo e com o favorecimento de empresas via políticas fiscais, o que pode prejudicar a concorrência.

PhD em economia pela Universidade de York e graduado pela Universidade de Coimbra, Gomes foi presidente da Autoridade de Concorrência de Portugal. Ele veio ao Brasil para participar de reuniões no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade).

Temos visto um aumento do protecionismo em países como os EUA e na Europa. Isso é prejudicial para a concorrência?

A OCDE está naturalmente preocupada com qualquer tendência de política. Uma das preocupações é que a globalização possa produzir os benefícios esperados. Por isso, é muito importante que haja cooperação entre as autoridades da concorrência para prevenir e punir quem prejudicar o bom funcionamento dos mercados. É preciso evitar que haja distorções no mercado, em que algumas empresas são beneficiadas fiscalmente em detrimento de outras.

“O que acontece no Brasil acontece em muitos países, pelo peso que a área de contratação pública tem, podendo chegar a 10%, 15% do produto nacional”

A política de incentivos tributários para o setor automotivo brasileiro foi questionada na OMC.

O problema é a seletividade dos impostos. Os Estados devem ser livres para estabelecer suas políticas fiscais; a questão é quando, dentro de uma mesma indústria, são seletivos em relação a quem paga e quem não paga impostos e isso provoca distorções na concorrência que afetam o comércio internacional.

A chegada de Donald Trump à presidência dos EUA agrava a questão do protecionismo?

Não cabe à OCDE comentar o que foi a escolha política dos cidadãos dos Estados Unidos. O país é membro da OCDE e vamos continuar trabalhando próximos anos, quaisquer que sejam as preocupações que os EUA venham a colocar no futuro.

A Lava Jato tem levantado cartéis em grandes obras públicas e a impressão da sociedade é de que quase todas as grandes obras no país são objeto de conluio. O que a operação pode significar para a concorrência no Brasil?

A OCDE não examina casos concretos, mas o que podemos dizer é que, tal como acontece no Brasil, acontece em muitos países, pelo peso que a área de contratação pública tem, podendo chegar a 10%, 15% do produto nacional. É uma área muito propícia para empresas fazerem conluio buscando um ganho adicional. Aqui, os casos que foram descobertos levaram ao conhecimento de outros casos e o instituto da leniência foi muito positivo para permitir isso. O programa de leniência no Brasil funcionou muito bem e é um bom exemplo para mostrar que as empresas não estão a salvo de serem descobertas.

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Que recomendações o senhor dá para o Brasil reduzir cartéis em licitações públicas?

É preciso refletir se a legislação em vigor é adequada para desincentivar cartéis em licitações. Essa é uma área prioritária para a OCDE e deve ser para qualquer governo, em particular perante as situações que foram desvendadas (no Brasil). Há formas de desenhar as licitações de modo a reduzir possibilidade de conluio, por exemplo usando a contratação eletrônica, que reduz a possibilidade de corrupção. É importante que funcionários e instituições saibam desenhar os procedimentos de contratação e formar as pessoas que lidam com licitação para identificar indícios de conluio.

Como o senhor avalia a atuação do Cade em relação à cooperação com outros países?

O Brasil é uma economia grande, com milhões de consumidores, e é um dos países que têm maior probabilidade de serem afetados por um cartel internacional – mais do que Portugal, por exemplo. O Brasil aderiu formalmente à recomendação da OCDE em relação à cooperação internacional e tem feito trabalhos com agências dos EUA, União Europeia, Canadá e Japão. É um bom exemplo de cooperação.

“O Brasil é uma economia grande, com milhões de consumidores, e é um dos países que têm maior probabilidade de serem afetados por um cartel internacional“

Temos um movimento de concentração nos mercados em momento de crise. Isso penaliza os países mais pobres?

Temos concentração em período de expansão e de contração. É preciso não esquecer que concentrações em geral não são negativas; apenas 5% das operações sofrem restrições pelas autoridades da concorrência e só 1% é proibido. Os outros 95% não trazem problemas. Em situação em que pode haver risco aos consumidores de aumento de preços quando existem crises, as autoridades da concorrência devem ter os instrumentos para remediar ou proibir operações sem problemas e proteger os consumidores.

Há setores específicos da economia mundial que mais preocupam pela possibilidade de cartelização?

Essa é a pergunta de um milhão de dólares. Há características de mercados que facilitam a cartelização, como em mercados em que os produtos são homogêneos, com procura estável, com poucas empresas ou com estruturas de custo semelhantes. Agora, entre haver características que facilitam e efetivamente haver a conduta ilícita do cartel tem uma grande distância.

Temos visto cartéis com atuação global que são descobertos a partir de denúncias e um aumento da concentração em vários setores. Isso é um foco do trabalho da OCDE?

Os cartéis são a violação mais grave e que promove impacto mais negativo na concorrência. É fundamental que as autoridades da concorrência saibam cooperar entre si. Nos casos de ato de concentração, elas podem trocar informações, discutir casos, chegar a remédios consistentes. Nos casos de cartéis, podem conduzir investigações simultâneas, trocar informações confidenciais. Isso pode ser fundamental para um bom resultado nesse setor.

As punições pecuniárias e na área penal aplicadas nos diversos países são suficientes para inibir a formação de cartel, ou o conluio vale a pena?

As autoridades da concorrência tentam a ser o mais dissuasoras possível, mas, se continuam a existir cartéis, é porque as empresas ainda acham que vale a pena. Ainda há muito trabalho a fazer até que as empresas deixem de fazer cartéis e um dos principais passos é mudar a cultura do país e os próprios cidadãos exigirem o combate aos conluios.

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