Comportamento

Ana Giongo* e Tatiana Cruz**

O impacto de Divertida Mente em crianças e adultos

Ana Giongo* e Tatiana Cruz**
06/07/2015 16:48
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Alegria, Medo, Repulsa e Tristeza assam marshmallow na fogueira que sai da cabeça da Raiva: sentimentos traduzidos e humanizados. (Imagem: Divulgação)
Divertida Mente, a mais nova animação da Pixar, tem por título original Inside Out. Se fosse assim traduzido, teríamos uma pista mais precisa do que vamos assistir: uma visão “de dentro para fora”, ou “ao avesso”, do que se passa na mente. É uma animação infantil por ser dirigida aos pequenos, mas que, com seu argumento consistente – baseado em conceitos das neurociências e da psicanálise –, também toca profundamente os adultos, que podem se remeter à experiência “infantil” que deu forma a suas vidas.
O filme coloca em cena, de modo colorido e preciso, o trabalho de inscrição das memórias que vêm a constituir nossa estrutura psíquica. No universo retratado, a mente de Riley, uma menina de 11 anos, vai se compondo a partir das experiências vividas e das marcas que as mesmas vão deixando. No comando de sua mente – e na de todos ao seu redor –, estão cinco sentimentos: Alegria, Tristeza, Raiva, Medo e Repulsa. Cada experiência pode ser armazenada como “traço de memória” num destes registros.
Algumas memórias, mais preciosas, transformam-se em “memórias-base”, definidoras do psiquismo. Outras são diluídas no tempo, assim como algumas “memórias perigosas” vão para um lugar ao qual não se tem acesso: o “subconsciente”. Na infância de Riley se formam “ilhas de lembranças”, estruturas que sustentam sua personalidade e que, por circunstâncias da vida, na passagem da infância à adolescência, são abaladas e precisam ser reinventadas, reconstruídas.
No filme, a Alegria tenta garantir um destino que exclua as memórias tristes e acaba por produzir uma confusão de sentimentos. A relação entre Alegria e Tristeza retrata a forma como nossa cultura lida com a tristeza: ela tem que ficar “presa”, é inútil e incômoda. Assim, uma das riquezas do filme é dar à tristeza um lugar de valor: um sentimento necessário, que permite refletir e dar sentido à experiência vivida.
Acima de tudo, Divertida Mente captura as crianças por cumprir uma função importante da ficção na infância: dar nome e consistência àquilo que não se consegue colocar em palavras. Assistir a um ataque de birra de “dentro para fora” permite identificar o sentimento que está no fundo desta cena.
O sucesso do filme se mede pelos efeitos nas crianças. Escutei de algumas delas perguntas sobre se os adultos também sentem medo, reflexões sobre que sentimento estaria “no comando” em alguns momentos e, inclusive, a criação de outro “personagem- sentimento”, quando uma menina disse que inventaria a Dúvida para a sua mente. Ao retratar a mente de “dentro para fora”, o filme abre – para crianças e adultos – janelas para dentro.
“Não dá pra esconder a Tristeza, né mãe?”
Não é de hoje que eu me pego pensativa depois de sair do cinema. Detalhe: de sessão de cinema infantil. Eu, que pirava o cabeção com Woody Allen, David Lynch, Lars von Trier, tenho saído mexida de filme de criança. Com as mãos ocupadas em segurar outras mãos, sacos de pipoca, casacos e bolsas (a minha e as das minhas filhas), sobra pouco tapume pras lágrimas.
E as crianças não perdoam: “Mãe, tu chorou?”. Sim, chorei. Só de perguntarem, choro mais um pouco. Estou no cinema e no divã ao mesmo tempo. “Eu também chorei, mãe. Sou como ela. Do início ao fim”, diz Clara, 10 anos, numa identificação total com Riley, a protagonista “humana” do longa, que, um ano mais velha do que ela, se vê diante da primeira crise existencial ao se mudar de uma cidade para outra.
Clara está assim – fervilhando. E eu assistia a Divertida Mente vendo outro filme passar na minha frente: o filme da vida real. Até bem pouco tempo, ela era a menina com uma rota mais curta entre a regra e sua execução. Hoje, existem tantas curvas entre as minhas expectativas e o rumo da nossa prosa diária… porque, como no filme, parece que a Alegria e a Tristeza sumiram do mapa, e a gaveta dos sentimentos da Clara ficou repentinamente bagunçada. Como acessar de volta a tranquilidade daquele caminho entre meu desejo e a atuação da Clara na vida?
Se a identificação dela foi direta com Riley, eu me senti o tempo todo como a Alegria, desdobrando-me para não dar espaço nem tempo para a Tristeza atuar na vida das minhas filhas. Mas a Clara chorou no filme. E eu também. Porque, assim como na história, é preciso ir contemplando ao longo da vida sentimentos mais complexos, aumentando a mesa de controle, incorporando novos botões e deixando rolar.
Já faz tempo que admiro uma certa bagunça na mesa de controle. Desconfio daquelas muito arrumadinhas, das famílias de comercial de margarina, porque, como diz o Caetano, a vida é real e de viés. Portanto, aproximar a Alegria da Tristeza me salta como um dos primeiros bons insights do longa da Pixar. E tem outra coisa que me pegou, também: achei a Alegria um pouco histérica na ânsia toda de ser alegre, entende? Um pouco eu? Talvez.
Então, como disse a Clara quando perguntei de qual parte do filme ela havia gostado mais, vou tentar pegar mais leve e ativar a escuta: “Fiquei muito triste quando a Alegria deixa a Tristeza pra trás. Eu achei a Tristeza fofa, fiquei com pena dela. A gente tem a Alegria e a Tristeza dentro da gente. Não dá pra esconder a Tristeza, né mãe? A gente precisa aprender a falar o que sente e a chorar.
* Ana Laura Giongo é psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre.
**Tatiana Cruz é jornalista, mãe da Clara, 10 anos, e da Elena, quatro.
Agência RBS