Saúde e Bem-Estar

Rosana Felix

Entidades médicas contestam a inclusão de terapias alternativas no SUS

Rosana Felix
21/04/2018 08:00
Entidades médicas e o Ministério da Saúde entraram em rota de colisão após o governo federal anunciar a inclusão de dez novas práticas integrativas e complementares (PICs) no rol de tratamentos oferecidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS), em anúncio feito em março.
De um lado, Conselho Federal de Medicina (CFM) e Associação dos Médicos do Brasil (AMB) se posicionaram contra a oferta de recursos terapêuticos que não teriam comprovação científica adequada. O ministério, por sua vez, mantém uma base de dados para demonstrar os efeitos das práticas, que seriam ainda uma alternativa para promover a saúde e reduzir custos nos serviços de média e alta complexidade. Na prática, porém, cabe a cada município decidir quais serviços quer ofertar.

Ampliação

O anúncio dos novos tratamentos foi feito pelo ex-ministro Ricardo Barros, que deixou o cargo em 2 de abril. Entretanto, nada muda agora que o ministério está sob o comando de Gilberto Occhi. A Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPICs) existe desde 2006 e está consolidada no país, explica o coordenador da área, Daniel Miele Amado. Inicialmente, eram ofertados cinco procedimentos; o rol foi ampliado para 19 em 2017 e, em 2018, para 29.
“Desde a criação do SUS, em 1986, já se pedia a inclusão de várias práticas. Todas as conferências nacionais subsequentes solicitaram inclusão e ampliação. As conferências são o espaço máximo de expressão social de gestores, usuários e profissionais. É uma demanda da sociedade”, afirma Amado, que diz ainda que as escolhas seguem critérios técnicos e são reconhecidas pela Organização Mundial de Saúde (OMS).

“Técnicos do Departamento de Atenção Básica analisaram um conjunto de dados e viram que muitas práticas já eram realizadas pelas equipes, mas não estavam dentro da política. Além disso, foi avaliado o reconhecimento por parte dos conselhos de cada área, pela oferta de cursos nas universidades brasileiras e por pesquisas cientificas”, relata.

A base de artigos referente a cada prática está na Biblioteca Virtual em Saúde, da Organização Panamericana de Saúde (Opas).

Conselhos médicos contrários

A terapeuta Maria Tereza Galléas realiza cromoterapia em Osíris Capelline, no Instituto Lótus. Foto: Fernando Zequinão/Gazeta do Povo.
A terapeuta Maria Tereza Galléas realiza cromoterapia em Osíris Capelline, no Instituto Lótus. Foto: Fernando Zequinão/Gazeta do Povo.
O CFM e a AMB se posicionaram contra as novas práticas, mas outros conselhos profissionais apoiaram o Ministério da Saúde, diz Amado. “De forma geral, todos se manifestaram favoravelmente: o de enfermagem, de fisioterapia, odontologia, psicologia, nutrição, biomedicina. No caso da medicina, há uma postura mais conservadora, que é um pouco do histórico da sociedade. Antes processavam quem praticava acupuntura, depois passaram a reconhecer como especialidade. Passa por um processo histórico de aceitação de algumas práticas”, opina.
Das 29 PICs, o CFM só reconhece a homeopatia (desde 1980) e a acupuntura (desde 1995). O governo federal já tinha uma resolução para o tratamento de acupuntura no serviço público desde 1988.
Em entrevista à Gazeta do Povo, o presidente da AMB, Lincoln Lopes Ferreira, criticou a postura do Ministério da Saúde. “Existe uma demanda por parte da população que é não vacinar. Se deixar isso acontecer, toda a população vai se infectar. Como é que ficamos? Se for para atender pedido que não tem fundamento na ciência, muito em breve vamos ter demandas que extrapolem qualquer nível de razoabilidade”, declara. O CFM não respondeu aos pedidos de entrevista. Em nota divulgada ainda em março, o presidente da instituição, Carlos Vital, afirmou que as PICs – com exceção da acupuntura e homeopatia – “ignoram a integração da habilidade clínica com a melhor evidência científica disponível”.

Custos à beira do caos

Além da discussão científica, outro ponto crucial diz respeito ao uso de recursos públicos. Logo depois do anúncio da ampliação das PICs, a AMB divulgou uma nota à população: “Recursos da saúde pública sendo desviados para ‘terapias’ alternativas”. O ministério discorda tanto da forma como do conteúdo da crítica. Segundo Amado, as terapias são complementares. “Quando se fala alternativa, está se colocando um tratamento em substituição a outro. Não é essa a intenção do ministério. São práticas complementares”, explica.
De todo modo, a AMB afirmou que é “ultrajante que recursos do SUS sejam direcionados a tais práticas, enquanto a cada ano se investe menos em saúde”. Ferreira disse que o SUS já está à beira do caos.

“Se tenho hoje R$ 100 para gastar com a saúde, esse valor vai cair para R$ 95, R$ 80, porque será preciso pagar os profissionais dessas práticas. Vai desviar recursos de necessidades imediatas. Como explicar a alguém que um parente morreu porque não teve atendimento, já que o dinheiro foi usado para pagar um profissional de constelação familiar?”, questiona.

“Sem entrar na legitimidade de cada prática, o que importa é aplicar o recurso público naquilo que é passível de comprovação científica”, acrescenta.

Promoção da saúde

O Ministério da Saúde alega que é justamente a preocupação com o recurso público que permeia a PNPICs. “A própria Organização Panamericana de Saúde veio ao Congresso de Práticas Integrativas [realizado em março] falando sobre o atendimento universal de saúde com recursos públicos. A grande questão é que precisamos sair de um modelo focado na doença, só no tratamento dela, e passamos a ter um modelo de promoção de saúde, que é muito mais barato”, afirma Amado.
Ele cita como exemplo a prática de tai chi chuan, que faz parte da Medicina Tradicional Chinesa (MTC), incluída no SUS já em 2006. “O tai chi ajuda idosos a prevenir quedas. Se ele não quebrar o fêmur, não vai usar serviços de alta complexidade, que custam muito caro, e vai ganhar muito em qualidade de vida, em vez de ficar acamado por anos. Outras práticas entram na mesma lógica”, assegura. Segundo ele, é preciso reduzir o número de medicamentos receitados e a emissão de exames.
Praticantes de Tai Chi Chuan, em Curitiba. Foto: Antônio More / Agência de Notícias Gazeta do Povo.
Praticantes de Tai Chi Chuan, em Curitiba. Foto: Antônio More / Agência de Notícias Gazeta do Povo.
Os profissionais de práticas complementares fazem esse mesmo tipo de discurso. Vivian Koch, proprietária da clínica Naturo Barigui, defende que muitos recursos poderiam ser economizados se houvesse uma sala com maca nos postos de saúde para atender pacientes que estão no aguardo de consultas. “Em vez de as pessoas ficarem lá, sentadas e reclamando da demora, poderiam ser atendidas com alguma prática integrativa enquanto esperam a consulta. Na verdade, isso faria tão bem que muitas até iriam desistir de ver os médicos, já que muitos vão no postinho apenas porque estão carentes, deprimidos, e não têm a quem recorrer”, diz.

Mesmo sem reconhecimento de médicos, práticas querem espaço

O Senado Federal aprovou em novembro um projeto de lei que autoriza a prescrição da ozonioterapia no Brasil, uma das práticas integrativas e complementares (PICs) incluídas no mês passado no rol de procedimentos do Sistema Único de Saúde (SUS). Esse tratamento, porém, não é reconhecido pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), que o trata como experimental. Ele consiste na mistura de ozônio com oxigênio puro.
O CFM, que tem a outorga para aprovar ou vedar procedimentos da área, informou que uma comissão específica já analisou a ozonioterapia. “Na oportunidade, as evidências apresentadas não foram consideradas consistentes, sendo recomendado que a ozonioterapia apenas seja realizada de modo experimental, observando-se as recomendações de protocolos de pesquisa”, informou a instituição em nota.
A Associação Brasileira de Ozonioterapia (Aboz) pediu uma reconsideração. A presidente da instituição, a médica Maria Emília Gadelha Serra, critica a forma como o CFM conduziu o tema. Além disso, a Aboz aponta que a ozonioterapia é reconhecida desde 2015 pelo Conselho Federal de Odontologia (CFO).

“Não entendemos como uma técnica pode ser aplicada na boca, nos ossos de milhares de pacientes de dentistas, e os médicos não aceitam”, lamenta.

Segundo o CFO, o ozônio tem ação microbiana, previne e trata quadros inflamatórios e infecciosos, auxilia na recuperação de tecidos e de necroses.

Benefícios

Enquanto isso, a Aboz apresentou o tema a senadores, que fizeram audiências públicas e se convenceram com os argumentos apresentados para uso médico. A economista Celina Ramalho, professora da FGV-SP e consultora da entidade, fez um estudo que mostra redução de “pelo menos 40% no orçamento público”. Na apresentação que fez no Senado, fez comparações de sessões de ozonioterapia com tratamentos convencionais para demonstrar essa economia. O projeto segue tramitando na Câmara dos Deputados, palco de lobby dos dois lados, dos que são contra e dos favoráveis.
O CFM não retornou o pedido de entrevista. Mas o presidente da Associação Médica Brasileira (AMB), Lincoln Lopes Ferreira, criticou o posicionamento da Aboz. “Não dá para impor terapia por lei. Quem é da década de 60 se lembra bem da talidomida, primeiro vendida como analgésico, mas seu uso implicou em má formação congênita. Quando falamos da necessidade de verificar a ação terapêutica é para determinar possíveis efeitos colaterais também”, explica.

Constelação

Essa prática já é bastante utilizada na resolução de conflitos do Judiciário brasileiro. Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), 17 unidades federativas já aderiram ao uso da constelação, que se insere na diretriz de apaziguamento de opostos.

Em Curitiba, prefeitura não garante oferta de novas práticas

Foto: Aniele Nascimento/Gazeta do Povo.
Foto: Aniele Nascimento/Gazeta do Povo.
Segundo o Ministério da Saúde, 165 municípios do Paraná ofertam as Práticas Integrativas e Complementares (PICs) no Sistema Único de Saúde (SUS). Em Curitiba, dos 29 tratamentos complementares do SUS, o município oferta homeopatia, acupuntura, yoga, agulhamento, auricoloterapia e tai chi chuan.
Segundo a superintendente de Gestão em Saúde da Secretaria Municipal da Saúde, Tânia Maria Pires, a inclusão de novas práticas não tem data para ocorrer, pois depende de recursos humanos e financeiros. “Não é porque o ministério autorizou que teremos tudo isso. Não temos condição de criar um grande programa de tratamentos complementares, porque a secretaria está contingenciada pelo seu orçamento”, explica.

Pessoal

A gestora diz que não há previsão de um novo concurso público. A aplicação das técnicas, portanto, depende dos servidores já contratados e que têm formação específica. “Os nossos fisioterapeutas, enfermeiros e médicos já têm suas funções dentro da abrangência de cada profissão. Eles podem fazer novos tratamentos, mas precisam fazer a gestão do seu tempo. Não pode desviar da avaliação de um músculo ou da reabilitação de um paciente que está em casa para fazer essas práticas. O tempo é o mesmo”, conta.
Tânia diz que o poder público não se posiciona contra as práticas, mas que elas precisam se inserir dentro da gestão de políticas públicas e também na realidade de cada comunidade. “Muitas dessas práticas têm origem em tratamentos orientais. Talvez elas sejam aceitas aqui também. Mas, na nossa formatação cultural de saúde, é diferente. Não é uma crítica, mas é preciso ter um olhar de gestor, tem que observar tudo, pensar em todas as práticas de saúde”, pondera.
Na reunião do Conselho Municipal de Saúde de Curitiba realizado em março, a oferta das PICs entrou em discussão. Foi criado um grupo de trabalho para discutir o tema. “Mas deixamos claro que precisamos ver nossas reais possibilidades e quais podemos realmente implementar, com nosso grupo de profissionais disponíveis”, ressalta.

Iniciativas

O histórico mostra que a oferta das PICs depende de iniciativas individuais de profissionais. A auricoloterapia, por exemplo, é ofertada em todos os distritos de Curitiba, mas sem horário definido. “É um médico ou fisioterapeuta que tem essa formação e, dentro da filosofia do trabalho, acabam ofertando ao paciente”. Em Curitiba, há oferta de yoga em algumas unidades, como na Unidade de Saúde Umbará 2. Uma das profissionais formou um grupo há sete anos, que se encontra uma vez por semana e atualmente tem cerca de 35 alunos. “Isso tem beneficiado muitas pessoas, tem um efeito positivo, as pessoas se sentem bem, aprovamos”, conta Tânia.
O aulão de yoga no parque é aberto a todas as idades. Foto: Divulgação
O aulão de yoga no parque é aberto a todas as idades. Foto: Divulgação
A terapia comunitária é uma prática incluída no rol do SUS em 2017, mas muito antes disso já era ofertada no serviço público no Brasil. Em Londrina, o atendimento começou em 2002, por iniciativa da terapeuta Maria da Graça Pedrazzi Martini. “Acabei convencendo o poder público que a estratégia era importante para prevenir problemas e diminuir os índices de medicamento e reincidência de depressão, diabetes, violência doméstica e hipertensão, que repercutem nas unidades de saúde e nos centros de referência social”.
Os terapeutas são profissionais do quadro da prefeitura de Londrina que foram capacitados. Segundo Maria da Graça, representante da Associação Brasileira de Terapia Comunitária (Abratecom), é preciso uma formação de 240 horas, das quais 30 horas de estágio prático. “Hoje, com outras práticas integrativas reconhecidas pelo Ministério da Saúde, mais do que nunca se torna fundamental que se olhe para a formação desse profissional”, sugere.
O psicólogo e cromoterapeuta Maurício Yanes da Silva diz que nos cursos que já ministrou formou muitos alunos de Santa Catarina e Rio Grande do Sul, que atuam em prefeituras. Ele é professor das faculdades Ibrate e Espírita, e também da Universidade Positivo, que neste ano lançou a Pós-graduação em Terapias Integrativas e Complementares, destinada a graduados nas áreas médicas. “Isso mostra a demanda por esse tipo de profissional. Um curso desses se tornará muito importante para atuar com essas práticas que agora compõem o SUS”, diz.

Conheça as 10 novas práticas complementares inseridas no SUS:

Materiais usados na cromoterapia. Foto: Jonathan Campos/Gazeta do Povo.
Materiais usados na cromoterapia. Foto: Jonathan Campos/Gazeta do Povo.
Apiterapia: uso de produtos produzidos pelas abelhas (apitoxina, geléia real, pólen, própolis, mel e outros).
Aromaterapia: uso de óleos essenciais.
Constelação familiar: técnica de representação espacial das relações familiares que permite identificar bloqueios emocionais de gerações ou membros da família.
Cromoterapia: utiliza as cores nos tratamentos das doenças com o objetivo de harmonizar o corpo.
Geoterapia: uso da argila com água que pode ser aplicada no corpo. Usado em ferimentos, cicatrização, lesões, doenças osteomusuculares.
Bioenergética: visão diagnóstica aliada à compreensão do sofrimento/adoecimento, adota a psicoterapia corporal e exercícios terapêuticos.
Hipnoterapia: conjunto de técnicas que induz a pessoa a alcançar um estado de consciência aumentado que permite alterar comportamentos indesejados.
Imposição de mãos: cura pela imposição das mãos próximo ao corpo da pessoa para transferência de energia para o paciente.
Ozonioterapia: mistura dos gases oxigênio e ozônio por diversas vias de administração com finalidade terapêutica.
Terapia de Florais: uso de essências florais que modifica certos estados vibratórios. Auxilia no equilíbrio e harmonização do indivíduo.
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