Saúde e Bem-Estar

A importância dos personagens do universo infantil

Luisa Nucada
28/02/2015 20:00
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Cristiane Souza Freitas, de 35 anos, com os trigêmeos Anselmo, Arthur e Leonardo, de 6 anos, e a caçula Mariana, de 4: o estímulo aos personagens desenvolve a capacidade dos filhos de acreditar naquilo que não se vê. Foto: Bruno Covello/Gazeta do Povo

Em uma tarde de férias, os trigêmeos Anselmo, Arthur e Leonardo, de 6 anos, brincam pela casa vestidos de super-heróis. A irmãzinha Mariana, de 4 anos, recém-desperta de um cochilo vespertino, cambaleia sonolenta com uma saia tutu de bailarina. Arthur usa óculos de grau e sua roupa preferida é a camiseta do Super-Homem, que ele veste com uma camisa jeans por cima, tal qual um mini Clark Kent prestes a entrar em ação. A mãe, a escritora Cristiane Souza Freitas, de 35 anos, deixa os filhos bem à vontade: se lhes dá na veneta, eles vão fantasiados ao mercado, ao restaurante, à casa dos avós…
Junto com o marido, o bombeiro Josoé Freitas, de 38 anos, ela procura estimular ao máximo o encantamento provocado por personagens fictícios, incluindo os do folclore brasileiro. “O Leonardo mesmo adora o boitatá e a mula-sem-cabeça”, conta. Cristiane não tem dúvidas de que a crença no irreal é muito positiva: “É um aprendizado de fé num sentido amplo, que desenvolve a capacidade de acreditar naquilo que não se vê”.
Cegonha, Papai Noel, Fada do Dente, Coelho da Páscoa. O universo infantil é povoado por seres inventados, lendas e alegorias. Os pais costumam alimentar esse mundo mágico com caçadas a ovos de chocolate e presentes postos na surdina sob a árvore de Natal. Entre uma armação e outra, pode surgir o questionamento: é saudável deixar os filhos levitando em fantasia ou o melhor é trazê-los para o chão da realidade?
Segundo o coordenador do curso de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), Naim Akel Filho, valer-se do imaginário na criação dos pequenos é mais que recomendável. “O cérebro infantil fantasia antes de ter raciocínio lógico. Um dos estágios de organização cerebral é coordenado pelo processo natural de fantasiar”, afirma o especialista, citando estudos do epistemólogo Jean Piaget: “A fantasia é uma forma de você ajudar a criança a organizar seus afetos e as percepções de si mesmo e do mundo”.
Para Akel Filho, lançar mão de fábulas para transferir valores sociais é empregar uma linguagem que o pequeno está apto a processar. Por exemplo, falar sobre a importância da amizade lendo o célebre trecho de O Pequeno Príncipe em que a raposa explica o que é cativar e criar laços. “Isso é muito legal, muito saudável. É utilizar códigos linguísticos que um cérebro em desenvolvimento tem competência para entender. Jesus Cristo fazia isso ao contar parábolas: transformava lições sofisticadas em linguagem compreensível para o povo.”
A professora das áreas de letramento literário e educação infantil da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Elisa Maria Dalla-Bona concorda que o incentivo à fantasia é favorável ao crescimento: “Estimular a imaginação não é tirar a criança da realidade. É dar meios para que ela possa entender o mundo que a cerca”. A inventividade é inerente à infância e se manifesta o tempo todo. Como quando um menino monta no cabo de vassoura e faz de conta de que é um cavalinho”, compara.
Observar os filhos brincando despertou um lado de Cristiane que estava adormecido. “Eles veem magia e encantamento não só em personagens irreais, mas na natureza, em tudo que está à volta. Redescobri a fantasia através do olhar deles e voltei a ser criativa. É uma capacidade que todos os seres humanos têm, mas vão perdendo”, diz a mãe que, inspirada pelo cotidiano dos filhos, começou a escrever histórias infantis há dois anos.
Contar ou não?
Thamily Lara da Silva, de 5 anos, é uma garotinha que pinta e borda com a imaginação. Veste-se de Chapeuzinho Vermelho, brinca de Monster High e Moranguinho e participa de eventos como o Boneca Viva, em São José dos Pinhais. Os pais, o operador de empilhadeira Evaldo Mariano Ribas Júnior, 23 anos, e a atendente escolar Marcela Iara da Silva, 22, fazem de tudo para que ela curta a meninice. “A infância passa rápido, é importante valorizar esses momentos”, diz a mãe.
Thamily Lara da Silva, de 5 anos, sempre se veste de Chapeuzinho Vermelho: os pais incentivam o lado lúdico da infância. Foto: Fred Kendi/Gazeta do Povo
Thamily Lara da Silva, de 5 anos, sempre se veste de Chapeuzinho Vermelho: os pais incentivam o lado lúdico da infância. Foto: Fred Kendi/Gazeta do Povo
Em dezembro passado, a filha botou Marcela em uma saia justa. Ao ver o primo fantasiado de Papai Noel para levar presentes a comunidades carentes, Thamily questionou por que o bom velhinho verdadeiro não dava agrados para as crianças pobres. “Aí eu perdi o rebolado”, admite. “Acabei dizendo que o Papai Noel entrega os brinquedos, mas quem dá o dinheiro para comprá-los são os pais.” A menina aceitou a resposta e segue crendo na figura rechonchuda de traje vermelho e bochechas rosadas, com quem adora tirar fotografias nos shoppings centers. “Enquanto pudermos fazê-la acreditar, assim vai ser. Ela fica feliz e a gente se diverte também”, reconhece Marcela.
Cedo ou tarde, os fatos vêm à tona, e os pequenos acabam descobrindo que aqueles personagens tão queridos não existem. Haveria, então, uma hora certa para “acabar com a inocência” e desmascarar a fantasia? Os especialistas são unânimes ao dizer que não. “A verdade nua e crua pode ser muito agressiva para uma mente imatura”, afirma Akel Filho. A realidade é descoberta naturalmente, através dos meios de comunicação, na escola ou com os amiguinhos, e fica tudo bem. “A fantasia jamais é mentira. Não é enganar. É usar uma forma de comunicação mais simples. Várias gerações de pessoas ouviram a história da cegonha e não sofreram grandes traumas por isso.”
O ideal, de acordo com ele, é ir acrescentando informações compatíveis ao nível de compreensão da criança à medida que ela cresce. Como exemplo, o psicólogo cita o temido momento em que os pais se deparam com a pergunta: “Como são feitos os bebês?”. “A mãe diz ao filho pequeno que o papai coloca uma sementinha na barriga dela, e ele se satisfaz com essa explicação. Quando adquirir uma maturidade maior, ele questionará de novo, sinalizando que está na hora de subir o nível do esclarecimento”, diz Akel Filho.
A lição é nunca despejar sobre a criança explanações muito sofisticadas, que podem chocar e ter efeito inibitório. “A substituição da fantasia por informação objetiva deve ser gradativa, acompanhando o desenvolvimento do cérebro infantil. Você vai emparelhando a imaginação com uma explicação mais intelectual até a criança saciar sua curiosidade sobre aquele assunto”, aconselha o psicólogo. “Todo mundo conhece adultos que acreditaram nesses personagens na infância e não viraram bobos”, afirma a professora de literatura. Para ela, esses seres são como “muletas” na vida das crianças. Conforme crescem, elas não precisarão mais deles, e irão abandoná-los. “Não é necessário contar a verdade, porque com a maturidade a criança se liberta. Deixe tudo acontecer a seu tempo, da forma mais natural possível. A última coisa que um adulto deve fazer é destruir a fantasia.”
Diferentes idades
A estudante de Letras Cynthia Regina de Souza, de 31 anos, e o assistente administrativo Adenil Ribas de Souza, de 37, têm quatro filhos em estágios diferentes de desenvolvimento. Quando chegou a hora de Benjamim, de 7 anos, aposentar a mamadeira, o casal aproveitou a chegada da Páscoa. “Dissemos que para ganhar o ovo de chocolate ele teria de entregar a mamadeira. Depois da troca, o Benjamim não ficou muito contente e quis bater no Coelhinho”, ri a mãe.
Benjamin (7), Analuiza (4), Ana Bel (2) e Adrian (9): os irmãos Souza vivem rodeados de imaginação. Foto: Lucas Pontes/Gazeta do Povo
Benjamin (7), Analuiza (4), Ana Bel (2) e Adrian (9): os irmãos Souza vivem rodeados de imaginação. Foto: Lucas Pontes/Gazeta do Povo
No último Natal, Adrian, de 9 anos, escreveu uma cartinha malcriada para o Papai Noel, dizendo ter descoberto que ele não existia. Passada a fúria, o menino se conformou e manteve segredo. “Ele decidiu não contar aos irmãos para preservá-los. Compartilhar a fantasia fortalece os laços de irmandade”, diz Cynthia, que é autora do blog sobre maternidade Mãe da Hora.
Fora as datas comemorativas, a mitologia é um universo onde os pequenos se alimentam de magia. “Eles conhecem o fauno, que é metade homem e metade bode, e o centauro, que é metade cavalo”, conta ela. As filhas menores, Analuíza, de 4 anos, e Ana Bel, de 2 meses de idade, também crescerão rodeadas por imaginação. “É tudo muito mais leve, eles têm um mundo dentro da cabeça e isso faz a infância durar mais. Nós adultos acabamos sendo mais felizes e resgatando os nossos dias de criança.”
Medo bom, medo mau
Os vilões dos contos de fada, como a bruxa e o gigante, não têm somente o papel de antagonizar com os personagens principais. Eles ensinam os pequenos a lidar com sensações assustadoras, afirma a professora das áreas de letramento literário e educação infantil da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Elisa Maria Dalla-Bona. “É muito positivo quando a criança sente medo e ansiedade ao ouvir uma história, porque é uma maneira de ela elaborar esses sentimentos.”
As maldades da ficção aterrorizam, podem provocar choro e xixi na cama, diz Elisa, mas não se materializam. Por mais que se tema o bicho papão, ele nunca sairá de baixo da cama ou de dentro do armário. “A fantasia é uma forma de viver o medo no campo simbólico e de adquirir elementos para enfrentá-lo”, resume. “Experimentar terror e susto e aprender a processar esses estímulos prepara a criança para viver no mundo real, que é cheio de perigos.”
O medo ruim, de acordo com ela, é aquele que paralisa. É o tipo de sensação provocada por personagens como o Homem do Saco, por exemplo, a que os pais recorrem quando não querem que os filhos fiquem na rua. “O medo paralisante é o pior medo que tem, ele não te impulsiona a uma ação de enfrentamento, só produz insegurança.”
Outro exemplo é a clássica chantagem: se você não for um bom menino, não ganhará presente de Natal. “Acho que é um péssimo recurso, a fantasia usada para barganhar interfere negativamente no imaginário infantil. É ruim misturar esses personagens que são tão caros para o desenvolvimento da criança com esse tipo de ameaça.”