Turismo

Os encantos da Colônia do Sacramento

Estadão Conteúdo
22/02/2015 03:50
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O portal da cidade histórica ostenta o brasão da coroa portuguesa. A tradição manda fazer um pedido ao cruzar a entrada. Fotos: Divulgação

A muralha de pedras se vê imponente à distância, como uma resistência para não ser engolida pela imensidão do Rio da Prata. Do alto, surge um canhão que dá a ideia ao visitante de que aquele está longe de ser um lugar turístico comum. Remanescente do período em que os destinos das terras uruguaias começaram a ser traçados, o armamento perfeitamente conservado já não ameaça ninguém. Ao contrário, convida.
A entrada pelo portal da cidadela é guardada pelo brasão da coroa portuguesa. Ao pisar a primeira viga de madeira abaixo do portal, a tradição manda fazer um pedido em silêncio. É o passo inicial para embarcar nos mais de 300 anos de história de Colônia do Sacramento. Ao longo dos 12 hectares cuidadosamente preservados da cidade histórica, em um passeio que não dura menos do que um dia inteiro, é impossível não se apaixonar pelo clima aconchegante entre o casario e as ruas de pedras – boa parte delas ainda originais do final do século 17. Desde 1995, a Colônia do Sacramento ou, originalmente, a Colônia do Santíssimo Sacramento, é considerada patrimônio histórico pela Unesco. Foi o reconhecimento a uma história marcada pela resistência.
Dizem que ali, em Colônia, o sentimento de ser uruguaio está mais vivo. Não no bairrismo, mas na receptividade. Em dias de céu claro, desde a ponta da muralha, às margens do Rio da Prata, vê-se a silhueta de Buenos Aires e, principalmente, do seu porto. Hoje, é a partir da capital argentina que chega a maior parte dos turistas a esse destino uruguaio, em uma viagem de barco de uma hora.
A ponta da muralha oferece uma vista panorâmica da capital argentina.
A ponta da muralha oferece uma vista panorâmica da capital argentina.
Uma realidade bem diferente da vivida em mais de um século por essa fortificação instalada pelos portugueses. No meio do caminho, por água, até Buenos Aires, está a Ilha de San Gabriel. Foi ali que o governador da capitania do Rio de Janeiro, Manuel Lobo, atracou pela primeira vez em janeiro de 1680. Depois de observar que, na margem leste do Rio da Prata, os espanhóis realmente não estavam instalados, resolveu avançar. Acabou por criar a primeira cidade do que viria a ser o Uruguai.
Um ponto estratégico para portugueses e ambicionado por espanhóis. Até o começo do século 19, essa terra mudou de mãos sete vezes. Se os espanhóis a tomavam pela força das armas, os portugueses retomavam na base de acordos diplomáticos. Essa disputa está marcada na arquitetura da cidade.
É preciso disposição para caminhar entre as ladeiras e muita curiosidade para sentir-se no ambiente dos moradores originais da Colônia. Eles dividiam espaço em casas baixas, erguidas com tijolos e parede de barro, recobertas por cal e sangue de animais, que até hoje mantêm o tom avermelhado.
As telhas são típicas dos portugueses, ou melhor, dos escravos que as faziam displicentemente. Casinhas típicas portuguesas são vizinhas de outras com características espanholas. Estas, livres dos cercos militares, foram erguidas com maior variedade de materiais e, sobretudo, com riqueza de detalhes nos ferros.
O casario antigo, ruas de pedras e cafés dão um charme todo especial à cidade.
O casario antigo, ruas de pedras e cafés dão um charme todo especial à cidade.
Restaurantes
Nesse caminho, além de entender os motivos da resistência aos exércitos, a recuperada arquitetura da Igreja do Santíssimo Sacramento e as ruínas do Convento de San Francisco, que hoje divide espaço com o Farol da Colônia, ajudam a suportar os caprichos da natureza. Então, se o vento vindo do Prata bater forte, ou se até mesmo a chuva lhe pegar de surpresa, não deixe de saborear a culinária típica em cada um dos restaurantes aconchegantes que ocupam parte do casario histórico, como o El Drugstore (Calle Portugal 174). Mas, acima de tudo, não deixe de fazer seu pedido no portal. Quem sabe assim você espante a maldição da freira (monja) que até hoje assombra as ruas da Colônia.
Restaurantes como o El Drugstore oferecem culinária típica em ambientes aconchegantes.
Restaurantes como o El Drugstore oferecem culinária típica em ambientes aconchegantes.
Rua dos Suspiros
Parada obrigatória na cidade histórica é a Calle de los Suspiros (Rua dos Suspiros), onde todo o casario e o calçamento são originais dos séculos 17 e 18. A curiosidade está no nome. Há pelo menos duas versões. É fato que a via, por ser a porta de entrada da cidade quando as embarcações atracavam ali, era ponto de prostituição. Uns dizem que os suspiros partiam de dentro das casas.
Mais romântica é a versão que relaciona o suspiro aos escravos negros. Ao desembarcarem dos navios negreiros, eles suspiravam por pisar em terra firme, justo no começo da via. Mas eram forçados a subir a tal rua e, lá no alto, na praça central, eram comercializados.
A Rua dos Suspiros era um antigo ponto de prostituição.
A Rua dos Suspiros era um antigo ponto de prostituição.
A maldição da “monja”
Dois anos depois da chegada de Manuel Lobo (fundador de Colônia), como era comum nos povoados portugueses e espanhóis, começou a ser construído o Convento de San Francisco, concluído em 1694. Dez anos depois, sob domínio espanhol, o local foi destruído por um incêndio. Com a chegada dos espanhóis a Colônia, porém, os monges e freiras que viviam ali foram expulsos. Diz a lenda que apenas uma delas resistiu. E, quando finalmente foi expulsa, ela teria amaldiçoado a cidade. Os moradores garantem que a maldição da “monja” sempre se manifesta. Basta marcar algum grande evento, como o aniversário da cidade, e a chuva estraga tudo. Hoje, as ruínas do convento são um lugar de visitação obrigatória.
Construída em 1808, a Igreja do Santíssimo Sacramento foi erguida com muros de pedras em um estilo tradicional português. O detalhe é que a pólvora da Colônia era guardada no forro da igreja. Pois em 1823, enquanto crianças eram batizadas, uma tempestade se abateu sobre a cidade. Quando os moradores saíram da igreja, um raio a atingiu, causando uma explosão. Restaram somente as duas colunas frontais e o muro dos fundos da igreja originais. A partir do final da década de 1950, a arquitetura original foi recuperada, mantendo as colunas e o muro que sobreviveram à tragédia. A igreja é adornada com obras originais do período jesuítico.
Igreja do Santíssimo Sacramento, que foi atingida por um raio em 1823 e restaurada no fim dos anos 1950.
Igreja do Santíssimo Sacramento, que foi atingida por um raio em 1823 e restaurada no fim dos anos 1950.
O tesouro dos vinhedos
É preciso sair da cidade histórica, pela Ruta 21, para conhecer um dos tesouros de Colônia, e de todo o Uruguai: um dos berços do vinho Tannat, a vinícola Los Cerros de San Juan, criada em 1854, foi a primeira a produzir vinho industrialmente no país em uma propriedade, na época mantida por uma família alemã.
Chegou a ter 9 mil hectares entre os rios do Prata e San Juan. É o ponto mais próximo da Argentina, pelo Rio da Prata. Hoje mantida por empresários argentinos, a propriedade tem 220 hectares (46 dedicados aos vinhedos) e recebe turistas para degustação acompanhada de um belo assado e de uma aula sobre a história do vinho no país – principalmente, sobre a produção do Tannat.