Cotidiano de Antigamente

Paulo José da Costa

De Rio Negro a Porto União numa canoa, a aventura de Gustav Tenius em 1899

Paulo José da Costa
19/06/2023 23:53
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Tipo de canoa provável que Gustav e sua família usaram. | Acervo de Paulo José da Costa

“Em novembro do ano de 1899, mamãe, eu e Rudi, este com apenas um mês de idade, embarcamos em Porto União da Victoria, em uma linda manhã, no vaporzinho ‘Cruzeiro’, com destino a Curitiba”. Assim inicia Gustav Tenius a segunda das 17 histórias que conta em seu manuscrito “Belas demonstrações de proteção divina em minha família”. Esse caderno de memórias (imagem 1) ele escreveu em 1951, mais de 50 anos depois dos acontecimentos, e me foi cedido há muitos anos por Teja Tenius. É uma profissão de fé ao declarar “alguns casos de verdadeira proteção de que fomos alvos e que merecem ser lembrados por serem de fato maravilhosos.” E prossegue: “lá fomos todos alegres e contentes para dar cabo a este grande desejo, baptisar o nosso primeiro filho!”
Imagem 1: manuscrito.
Imagem 1: manuscrito.
O casal iria aproveitar essa viagem a Curitiba para fazer compras, pois possuíam um negócio em União da Victoria, e na capital iriam abastecer o armazém para o Natal que se aproximava. Assim é que, em 10 de dezembro de 1899, realizou-se o batizado com a presença dos demais membros da família residentes em Curitiba, inclusive a “Oma”, vovó orgulhosa de seu primeiro netinho... Ele observa que o “Opa”, avô, já tinha diversos netos de seu primeiro matrimônio.
“Bem se pode avaliar quanto agradável, alegre e, pode-se dizer, bonita festinha foi esta, entre quase toda a parentada e que não eram poucas... A comilança, jantar, café e doces, regados com bebidas de todo jeito, não faltou o típico champagne, que de fato era bem bebível e correu sem dó nem piedade... O velho realeixo do Colbach de Joinville não cessou em tocar suas melodias alegres, provocando a vontade de um arrasta-pés, o que foi feito com todo gosto e poesia.”
Esse “realejo” que o nosso narrador menciona era fabricado em Joinville, um aparelho precursor dos futuros gramofones. Ao que me consta, a fábrica Kolbach foi a única no Brasil a construí-los, sendo que usavam discos de metal com furos que, ao girar, acionavam pequenos tubos de órgão produzindo música. O que eu não daria para ter um desses em meu acervo, já que tenho diversos discos, mas o aparelho, nunca vi na vida! O YouTube, na internet, traz diversos registros com modelos estrangeiros como Symphonium, Olympia, Regina, etc. Basta você clicar para ouvir. São sons do passado que podemos reviver com esses discos.
Imagem 2: Porto Amazonas com vapores atracados. Postal de Langer, 1905.
Imagem 2: Porto Amazonas com vapores atracados. Postal de Langer, 1905.
Após a festa, nossos três visitantes precisaram se apressar para o retorno, já que o armazém aguardava os suprimentos que seriam levados em caixas, engradados e sacos. Como nenhum rio era navegável a partir de Curitiba, Gustav telegrafou para a Casa Bührer, em Porto Amazonas (imagem 2), perguntando sobre os vapores. Mas teve então o dissabor de descobrir que todos eles haviam descido para Porto União. Assim é que telegrafou para o sr. Kirschner, em Rio Negro, (imagem 3), recebendo a resposta de que um vapor iria descer e se ele quisesse aproveitar, que fosse o quanto antes. Despediram-se da família, colocaram a carga toda no trem e seguiram viagem. Mas, chegando ao local de embarque, em Barra Feia, veio então a má notícia: o vapor, que se chamava coincidentemente Rio Negro, não iria mais descer, pois fora contratado para uma grande carga de erva mate...
Imagem 3: Rio Negro em 1902 .
Imagem 3: Rio Negro em 1902 .
“Claro é que tive um bate-boca com este sujeito pois faltavam poucos dias para o Natal e eu precisava seguir sem falta para estar em casa em tempo e com o sortimento do negócio e todos os preparos para o Natal... Como era muito conhecido no lugarejo, falei com um morador pedindo que me ajeitasse uma canoa e uma pessoa para poder seguir viagem, contei-lhe o que esse Kirchner nos fez. Este meu conhecido arranjou uma pequena mas boa canoa e um rapazote de uns quinze anos e assim pude por em prática a tentativa de continuar a nossa viagem. Fui no lugar adonde o vapor estava, retirando toda nossa carga e bagagem, pondo-a na dita canoa. Ao ver isto o comandante e toda a tripulação ficarão indignados com o ato desse Kirchner e se chegarão a ele... dizendo que nos queriam levar e os dias que levarão para isto ele podia descontar do ordenado deles... mas cousa alguma fez reconhecer a maldade que estava praticando... Assim é que a canoasinha foi carregada, embarcamos e lá se fomos com o favor de Deus!”
Tipo de canoa provável que Gustav e sua família usaram.
Tipo de canoa provável que Gustav e sua família usaram.
Conforme Gustav vai narrando, descobrimos que a canoa media uns 70 cm de largura e de sete a oito metros de comprimento (imagem 4). “A carga passava da borda superior uns 60 cm, deixando apenas o lugar de mamãe, então bem acomodada com o Rudi no colo, o lugar para o piloto e outro na proa para o remador. O assento e o encosto para mamãe eram dois colchões novos que íamos levando... Como íamos navegar durante a noite estava tudo coberto com lona impermeável que também azeitei. Assim também o colchão enrolado e em pé que servia de encosto para a mamãe, tudo para evitar a humidade e o sereno da noite.”
A viagem num vapor de Rio Negro a Porto União levava em torno de dois dias, desde que não estivesse puxando outros barcos carregados. Imaginemos então aquela aventura de canoa, na base do remo, em que se lançavam nossos viajantes... Saindo em torno de uma hora da tarde da Barra Feia, ao finalzinho do dia chegaram a um lugar para fazer a refeição. Então, continua contando o nosso aventureiro, “foi feito um bom fogo e tínhamos trazido entre outras iguarias uma suculenta feijoada em conserva, foi isto com o um verdadeiro pequeno piquenique, e também um bom café mamãe fez. Para o nosso Rudi foi feito uma boa papa de maizena com leite e assim  bem alimentados ficamos aptos para o que der e vier...”
*Continua no próximo número.