Opinião

De tanto te olhar, meus olhos não veem mais ninguém

29/07/2022 16:02
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Uma vez me deparei com a palavra escopaestesia, que nomeia a capacidade de sentir que se está sendo observado. A palavra vem do grego: skopein (olhar) e aesthesis (sensação). Mas deixemos os gregos de lado. Essa é a história de meu tio Alfredo e sua esposa Tereza, ambos falecidos.
Quando descobri por acaso a palavra escopaestesia, tratei de memorizá-la para contar ao tio. Foi após um batizado. Fui ao encontro dele, que bebia seu uísque junto à churrasqueira, conversando com o sobrinho encarregado da carne. Tio Alfredo era o último de oito irmãos e por isso era paparicado como se fosse o avô de todos nós.
– Tio, olha só o que descobri.
– Descobriu que sou seu tio favorito?
– Descobri a palavra escopaestesia!
Foi minha impressão ou o tio fez cara feia?
– Sei.
– O senhor já conhece?
– Claro, não é minha especialidade?
Sabe quando você tem aquela sensação de que alguém está te olhando e, instintivamente, vira-se para trás e se depara com dois olhos atentos? A sensação é tão rápida e fugidia que é difícil descrevê-la. Mas como muitas pessoas falam dessa experiência e não conseguem explicá-la, a tal escopaestesia vem sendo estudada há mais de 100 anos, sem conclusões satisfatórias. A explicação que mais me convenceu é que se trata de um instinto desenvolvido pelos humanos primitivos que viviam sujeitos a serem devorados por animais selvagens, um alerta permanente que se forma a partir da combinação de todos os cinco sentidos.
Tio Alfredo não era um animal selvagem, mas despertou este instinto primitivo na tia Tereza. Durante um comício na cidade de Tomazina, ela se sentiu observada, olhou discretamente para trás e descobriu seu futuro marido a fitá-la na maior cara de pau. No palanque, Bento Munhoz da Rocha Neto continuou discursando, mas Tereza não podia mais ouvi-lo porque sentia o olhar do tio Alfredo no pescoço, quase como um toque de dedos.
Esta história foi contada diversas vezes, em natais, páscoas e batizados. Todos nós nos reconhecíamos no relato de tia Tereza, todos lembrávamos de ter alguma vez percebido quando éramos observados, a tal escopaestesia. Tia Tereza morreu cedo e, em respeito a ela, os irmãos e cunhadas de Alfredo mantiveram a boca fechada. Só naquele almoço de batizado, quando o tio se retirou, o primo mais velho deu com a língua nos dentes.
– Sabe que o tio Alfredo era especialista nesse negócio aí?
– Que negócio?
– Essa escopa...
A palavra é difícil e a história, um segredo de família. Tio Alfredo tinha o hábito de olhar para várias moças ao mesmo tempo: em comícios, missas, enterros, na sala de aula. Onde estivesse, ele identificava algumas mulheres e cravava os olhos nelas. Em todas elas. A tal escopaestesia fazia com que uma ou outra olhasse para ele. Naquela tarde do comício do Bento em Tomazina, três pares de olhos femininos se voltaram para Alfredo. Uma, duas, três vezes. Os irmãos começaram a trocar olhares preocupados. Aquilo ia acabar mal. Diante da possibilidade de que a tripla paquera fosse desmascarada, tio Alfredo se dirigiu à moça que estava mais perto, Tereza, e a convidou para tomar um sorvete. Era uma estratégia para sair dali, mas como o amor é imprevisível, Alfredo não largou mais de Tereza e fez a família prometer que guardaria segredo para sempre. De certa forma, ele contou a verdade, mas de uma forma tão poética que ela entendeu o que quis: “De tanto te olhar, meus olhos não veem mais ninguém” – teria dito Alfredo para Tereza, sorvete nas mãos e todos os irmãos por testemunha.
Alfredo, o rei da escopaestesia, não gostava de falar de seu donjuanismo e morreu sem nos contar qual é o segredo para se conectar de forma tão eficiente através do olhar.