Opinião

O que levar em caso de fuga

07/05/2022 20:04
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Diante de imagens de apartamentos destruídos pela guerra, me ocorre um pensamento: o que o morador levou consigo na fuga? Teve tempo de olhar em volta e pensar “levo isso ou aquilo?” Pegou uma mochila e jogou dentro dela a peça de roupa preferida? Aquele objeto que guarda desde a infância? É mais provável que tenha saído às pressas, apressado pelo barulho de bombas ou tiros.
Será que porta de casa está trancada?
Alguns documentos certamente foram levados, que eles são fundamentais e cabem no bolso. Talvez uma joia que também cabe no bolso e pode ser vendida quando o dinheiro acabar. Será que o dono do apartamento teve tempo de abrir a gaveta onde guarda fotografias e pegar algumas?
O que salvamos quando é preciso deixar tudo para trás?
Os objetos não são nossa prioridade quando o que está em jogo é a sobrevivência. Ainda assim, o que fica e o que se extravia dá uma dimensão das perdas que as pessoas em fuga enfrentam.
Em um livro maravilhoso sobre rituais, o filósofo sul-coreano Byung-chul Han diz que as coisas são refúgios estabilizadores da vida. Como os rituais que se repetem (cada vez mais raros), as coisas que são sempre iguais tornam a vida suportável. O porta-retrato com a foto dos pais que descansa há anos sobre a pequena cômoda, o caneco de chope exibido na churrasqueira como um troféu, a peça de cerâmica comprada na primeira viagem ao exterior. Todos se contrapõem “à modificação torrencial da vida natural” (aqui o coreano está citando Hanna Arendt).
Aquele objeto que não sai mais da nossa mão, o smartphone, é de outra natureza, diz Byung-chul Han. O celular não é uma coisa que se repete. Ele é contra a repetição por ser apenas o ponto de passagem de “conteúdos”. “A agitação inerente ao aparato faz com ele vire uma não-coisa. É- se coagido a tocá-lo. De coisas, contudo, não deveria partir qualquer coação.”
Os que fogem de casa para salvar a própria vida durante a guerra certamente carregam seus smartphones. Talvez esqueçam o carregador, talvez deixem o computador. Mas o smartphone, os documentos e o cartão de crédito vão no bolso. Fora isso, mais nada – é o que suponho, já que não vivi nada parecido. Quando a vida estiver normalizada, quando não estiverem mais em fuga, eles vão se perguntar o que terá acontecido com o álbum de fotografias, com os livros preferidos, com a gravata do pai que estava guardada há tantos anos, com o relógio do avô.
As imagens das cidades ucranianas destruídas me fizeram pensar sobre o que eu carregaria comigo. Além dos filhos e dos documentos, eu precisaria levar nossos animais. Como são muitos (os cachorros Pretinho e Maninha e os gatos Mister, Tigrinho e Boy), este seria um grande problema, certamente uma grande fonte de dor e sofrimento. É um pensamento tolo de quem está distante, mas que me aproxima um pouquinho do que eles estão passando por lá.