Instituída em 2008 como um pacto do setor privado brasileiro em resposta à pressão dos europeus contra o desmatamento no bioma amazônico, a Moratória da Soja está sob fogo cerrado de agricultores e lideranças políticas do Centro-Oeste e Norte do país. No próximo dia 12 de julho, uma audiência conjunta da Câmara e do Senado vai debater a proposta de pôr fim à moratória, acusada de exigir desmatamento zero, enquanto o Código Florestal Brasileiro autoriza aproveitamento de 20% da área das propriedades na Amazônia.
Em entrevista à Gazeta do Povo, o diretor de Sustentabilidade da Associação Nacional dos Exportadores de Cereais (Anec), Pedro Eymael, diz que a moratória é estratégica para preservar as conquistas da soja brasileira. Seu fim, diz ele, poderia impactar todo o fluxo das exportações do país, e não somente da oleaginosa. Leia a entrevista:
Moratória tornou possível expansão ordenada da soja, diz Eymael
Gazeta do Povo – A Moratória, lá atrás, foi imposta pelos clientes, e feita às pressas, como disse o presidente da Anec na audiência em Brasília. Era para ser provisória, já dura quase duas décadas. A moratória protege ou prejudica a soja brasileira?
Pedro Eymael – A Moratória da Soja foi criada para proteger a soja brasileira, atendendo às enormes pressões por uma produção livre de desmatamento no bioma Amazônia. Esse mecanismo pode ser considerado a solução mais flexível dentre as opções disponíveis naquela época: é um pacto brasileiro, implementado por brasileiros, que permite a produção controlada de soja no bioma Amazônia, com o objetivo principal de promover as exportações brasileiras no cenário internacional.
O estabelecimento da Moratória e sua continuidade permitiram que as exportações de soja brasileira crescessem de maneira controlada, contribuindo para que o Brasil se tornasse o maior exportador de soja do mundo. Embora inicialmente prevista como uma medida provisória, a credibilidade internacional adquirida pelo pacto e sua importância para a preservação das exportações brasileiras justificaram a decisão estratégica de continuar com o pacto. A Moratória garante que a soja brasileira seja produzida e comercializada sem comprometer a preservação da Floresta Amazônica, o que se tornou um diferencial no comércio internacional.
Além disso, enquanto em 2008 havia pouco mais de 1 milhão de hectares dedicados à produção de soja no bioma Amazônia, hoje temos aproximadamente 8 milhões de hectares, quase 100% em conformidade com a Moratória da Soja. Esses números comprovam que o compromisso setorial não prejudicou o desenvolvimento e crescimento da produção e comercialização da soja brasileira. Pelo contrário, permitiu que a produção avançasse. A Moratória demonstrou que é possível aumentar a produção de soja sem desmatar, utilizando áreas já abertas antes de 2008.
China já exige conformidade com a moratória
Qual o risco de se acabar com a Moratória da soja para a inserção do grão brasileiro no mercado internacional?
O mercado internacional de hoje é muito diferente do que era em 2006. Quando a Moratória da Soja foi criada, apenas os países da União Europeia, que representavam uma grande parte das importações de soja brasileira, exigiam que a soja fosse livre de desmatamento. Desde então, a sustentabilidade e o meio ambiente se tornaram temas cada vez mais presentes no cenário global, com avanços significativos impulsionados pelo Acordo de Paris e pelos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, que exemplificam um esforço mundial para lidar com o aquecimento global e limitar o aumento da temperatura a até 1,5°C. Além disso, estudos científicos mostram recordes de temperatura atmosférica e oceânica sendo quebrados e eventos climáticos extremos, como as recentes chuvas no Rio Grande do Sul, cada vez mais frequentes e intensos.
Neste contexto de maior atenção e preocupação com questões ambientais e climáticas, as sociedades de diferentes países se tornam mais conscientes sobre assuntos como poluição, energias renováveis e desmatamento. Isso fez com que compradores de outros países, além do bloco europeu, passassem a comprar soja brasileira devido à Moratória da Soja.
O mercado consumidor atual é mais exigente em termos de sustentabilidade: as pessoas não querem mais adquirir produtos associados ao desmatamento no bioma Amazônia, dada sua importância para o equilíbrio climático e ambiental, tanto regional quanto mundial. Dessa forma, os importadores de soja brasileira sabem que terão dificuldades em comercializar internamente o produto se houver a percepção de que ele não é ambientalmente correto. A Moratória funciona, assim, como uma garantia para uma comercialização responsável e segura da soja brasileira.
Hoje, compradores do principal país importador da soja brasileira, a China, já exigem a declaração de conformidade com a Moratória da Soja na importação, mostrando como o pacto não se restringe apenas à União Europeia. Além disso, recentemente, no final de maio, uma grande empresa chinesa exportadora de grãos, operando no Brasil, realizou a primeira entrega de soja brasileira totalmente livre de desmatamento para a China, evidenciando como o país está cada vez mais atento aos requisitos ambientais nas cadeias de fornecimento dos produtos importados. Ademais, países como Indonésia, Japão e Tailândia são exemplos de outros mercados onde os compradores internacionais também exigem a declaração de conformidade com a Moratória da Soja na importação.
Dessa forma, o fim ou a perda de credibilidade e confiabilidade no pacto setorial podem colocar em risco o fluxo das exportações brasileiras, não apenas de soja, mas também de outros produtos cuja reputação poderia ser afetada. Do ponto de vista econômico, uma análise importante deve ser feita: o fim abrupto da Moratória da Soja poderá afetar negativamente a demanda pela soja brasileira no mercado internacional devido aos pontos mencionados anteriormente.
Ao mesmo tempo, o término do compromisso visa aumentar a oferta de soja brasileira, permitindo o desmatamento de mais áreas para aumentar a produção. A conclusão é clara: com o aumento da oferta e a diminuição da demanda, haverá uma grande desvalorização do produto, afetando os preços e o valor da soja brasileira.
Degradação ambiental tem consequências "possivelmente catastróficas"
A Anec reconhece que as exigências da Moratória conflitam com o que é permitido de desmatamento legal dentro do Código Florestal Brasileiro?
O Código Florestal Brasileiro de 2012 exige que propriedades rurais em áreas florestais no bioma Amazônia preservem 80% de suas áreas como reserva legal. Por outro lado, a Moratória da Soja estabelece um requisito de desmatamento zero. Nesse sentido, a Moratória da Soja é um acordo voluntário do setor privado que vai além das exigências do Código Florestal, mas não entra em conflito com ele. É importante enfatizar que o mercado internacional atualmente não aceita apenas o "desmatamento legal", especialmente na Floresta Amazônica. O desmatamento zero é necessário para manter a reputação da soja brasileira.
Além disso, o uso da terra e o desmatamento são hoje os principais fatores de emissão de gases de efeito estufa no Brasil. Portanto, o desmatamento zero está alinhado com os esforços necessários para que o país atinja os objetivos estabelecidos pela Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC) do Brasil no contexto do Acordo de Paris.
Por fim, o setor entende que a conservação ambiental é essencial não apenas para proteger a exportação de soja, mas também para garantir sua produção no Brasil. A preservação das florestas no bioma Amazônia é crucial para a manutenção dos regimes de chuva em várias regiões do país, permitindo a expansão e continuidade da agricultura. Estudos demonstram que as mudanças de vegetação no bioma Amazônia já estão alterando os fluxos dos chamados "rios voadores", gerando maiores dificuldades para a produção de grãos.
Além disso, os recentes eventos no Rio Grande do Sul destacam como as consequências da degradação ambiental das últimas décadas ainda são imprevisíveis e possivelmente catastróficas. Portanto, seria ingênuo por parte dos setores produtivos e exportadores não considerarem a preservação e conservação ambiental. Dessa forma, a Moratória da Soja se estabelece como um mecanismo de preservação e proteção do setor produtivo como um todo.
Moratória e EUDR não são excludentes
A própria União Europeia, por meio das regras do Regulamento de Antidesmatamento (EUDR), colocou novas exigências para a a soja brasileira. Diz que não tolerará o grão vindo de área desmatada após 2020. Qual regulamento será seguido pelos exportadores, e com retroatividade à qual data? 2008 ou 2020?
A Moratória da Soja e os requisitos da EUDR possuem diferenças importantes. A Moratória estabelece desmatamento zero para a produção de soja, com a data de corte em julho de 2008. Em contraste, a EUDR não só estabelece desmatamento zero com a data de corte em dezembro de 2020, mas também exige rastreabilidade total das cargas importadas pelos europeus, conformidade total com as leis nacionais dos países exportadores, análises de risco de desmatamento associado à produção da mercadoria e segregação física total do produto que esteja em conformidade com os requisitos.
Seguir a Moratória da Soja e atender aos requisitos da EUDR não são ações excludentes. Para as empresas que já seguem a Moratória, será mais fácil atingir a conformidade com a EUDR, uma vez que há sobreposições de exigências, especialmente no âmbito do desmatamento zero. A decisão de seguir com a Moratória e adaptar-se aos requisitos da EUDR é voluntária e estratégica de cada empresa. Entretanto, é importante ressaltar que, enquanto a EUDR será aplicada às exportações destinadas à União Europeia, a Moratória da Soja possui credibilidade e reconhecimento mundial que se expandem para além da Europa, com vários países na Ásia, por exemplo, exigindo a declaração de conformidade com a Moratória.
Por fim, vale ressaltar que, com a intensificação das questões climáticas, a tendência é que regulações e exigências comerciais relacionadas ao meio ambiente, como a própria EUDR, se tornem mais frequentes. A Moratória da Soja, nesse sentido, é uma maneira de o setor brasileiro se preparar para um futuro com maiores desafios no cenário internacional.
Como a Anec responde à insinuação de que, junto com a Abiove, trabalha para preservar exclusividade de mercado de originação da soja? Já que estaria aconselhando os produtores a plantar milho e outros cultivos nas áreas desmatadas legalmente. Assim, não seria uma questão ambiental, mas tão somente econômica.
Muitos criticam a Moratória da Soja por supostamente prejudicar o setor produtivo. Embora seja inegável que a Moratória impõe certos limites, é crucial compreender que o objetivo maior do pacto é defender o próprio setor da soja brasileira. Sem uma reputação positiva no exterior, o país não teria alcançado os níveis de exportação que atingiu nos últimos anos. A credibilidade da Moratória permitiu que a produção e exportação de soja crescessem de forma segura e controlada, principalmente a soja proveniente do bioma Amazônia.
Outro ponto crucial da discussão é o custo significativo que a Moratória impõe às próprias empresas exportadoras de soja. Elas precisam manter equipes internas robustas, contratar serviços de auditoria caros, alocar grandes recursos para a manutenção das análises de satélite e polígonos de desmatamento e lidar com diversas críticas internas.
Além disso, do ponto de vista comercial, a Moratória reduz a oferta de soja no mercado interno ao fazer com que essas empresas percam fornecedores, aumentando o preço que elas têm que pagar, especialmente no bioma Amazônia. Todos esses custos e esforços demonstram que, se a Moratória da Soja não fosse essencial para a manutenção e desenvolvimento das exportações brasileiras, ela certamente não continuaria existindo até hoje.
Veja como funciona a moratória da soja
Pedro Eymael – Em termos ambientais, a Moratória da Soja estabelece desmatamento zero para a produção de soja. No entanto, seu mecanismo ainda assim limita o desmatamento: uma lista de propriedades em não-conformidade é criada, e as empresas signatárias deixam de comercializar soja com essas fazendas. Quando um produtor deseja que sua propriedade seja retirada da lista, ou seja, se regularize perante a Moratória, ele precisa assinar um termo de compromisso. Nesse termo, o responsável compromete-se a não plantar soja nos polígonos de desmatamento posterior a 2008 e a não realizar mais nenhum desmatamento na propriedade inteira.
Caso o produtor assine esse termo, mas seja identificado posteriormente que houve plantação de soja nos polígonos ou novas áreas foram abertas na fazenda, a propriedade volta para a lista. Após isso, a única e última maneira de sair novamente é por meio de um Programa de Regularização Ambiental (PRA) para restaurar as áreas desmatadas.
Assim, é importante notar que a Moratória é flexível ao permitir o uso de áreas desmatadas após 2008 para a produção de outras culturas. No entanto, uma vez regularizada perante o pacto, a tolerância para desmatamento torna-se zero, mesmo para a produção de outros produtos.
Se a moratória da soja acabar – por via judicial ou política – a Anec e a Abiove continuarão a fazer a certificação das originações, demonstrando que haverá uma soja de área não desmatada após 2008?
A Moratória da Soja é um pacto setorial do setor privado em parceria com a sociedade civil. Caso a Moratória da Soja seja encerrada, caberá a cada empresa individualmente estabelecer seus próprios mecanismos e objetivos de desmatamento zero ou não. É importante mencionar que, atualmente, cada vez mais empresas estão adotando unilateralmente estratégias de cadeias de fornecimento livres de desmatamento [desmatamento zero].
Muitas dessas empresas têm metas para 2025, 2030 e 2050. Essa tendência ocorre porque muitas empresas também têm objetivos de se tornarem "net-zero", ou seja, de zerar as emissões de carbono relacionadas às suas atividades. Assim, mesmo que a Moratória da Soja termine, a realidade do desmatamento zero continuará existindo de alguma forma, com a previsão de continuar crescendo no setor privado.
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