Uma ferramenta antiga e, para muitos, ultrapassada, está sendo retomada pelo governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para tentar intervir no mercado e regular preços de commodities agrícolas, com o objetivo de combater a inflação, pôr comida barata na mesa dos brasileiros e ajudar pequenos produtores. Das três justificativas, somente a última teria chance de se concretizar parcialmente, e, mesmo assim, envolvendo um universo muito reduzido de produtores e a um custo elevado para os cofres públicos.
A Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) escolheu o milho para marcar a volta das Aquisições do Governo Federal (AGFs) e vai comprar 500 mil toneladas do grão a um custo de R$ 400 milhões em seis estados brasileiros. Esses grãos ficarão em armazéns próprios da Conab ou credenciados, como estoque de passagem, à espera de novas oscilações de preços, podendo “socorrer” criadores de aves, suínos e gado em caso de alta das cotações.
Poderá a ação da Conab regular preços no mercado de milho, uma commodity cuja cotação é feita em dólares no mercado internacional?
“Piada”, “foco errado”, “medida obsoleta”, “fora de contexto” e “não fará nem cócegas” são algumas das reações de analistas e especialistas de políticas agrícolas ouvidos pela Gazeta do Povo.
Em termos macro, compras do governo terão efeito irrisório
Num cálculo rápido, percebe-se logo que as 500 mil toneladas de milho a ser adquiridas pelo governo vão ter efeito zero ou irrisório para regulação do mercado. O país está colhendo uma segunda safra de milho, também conhecida como safrinha, de 100 milhões de toneladas.
“Essas 500 mil toneladas são uma piada. Se for olhar, é meio por cento da safrinha. Somente nosso consumo interno demanda 6,5 milhões de toneladas por mês. O que o governo vai comprar não dá para uma semana, quatro dias apenas do consumo nacional. É muito pouca coisa para dizer que vai ajudar a equilibrar os preços num momento de crise”, diz o engenheiro agrônomo e analista de mercado Vlamir Brandalizze. Para ele, o dinheiro teria melhor destino se fosse usado para financiar linhas de armazenagem ou melhorar a logística de embarques para exportação.
A ação do governo tem baixo potencial para mexer no mercado tanto em momentos de sobra de oferta, como em tempos de escassez. “Se tivermos uma quebra da safrinha no ano que vem, por exemplo, em que a gente não consiga colher 100 milhões de toneladas, mas apenas 70 milhões, e houvesse necessidade de muito milho, esse estoque também não serviria para nada. É uma política atrasada, estão pegando a história do passado, quando seria preciso planejar o futuro. E o futuro será de safras cada vez maiores”, enfatiza o agrônomo.
Risco de os cofres públicos pagarem o dobro pelo mesmo milho
Aprender com o passado, nesse caso, não deveria envolver reeditar medidas de intervenção física no mercado de grãos, mas entender que a agricultura se modernizou, assim como os métodos de auxílio aos produtores e à população. Durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), 27 unidades da Conab foram fechadas e 124 armazéns e galpões qualificados para privatização, diante da subutilização desses espaços e alto custo para os cofres públicos.
“Se a gente olhar para a atuação da Conab no passado, ela comprava cesta básica e pagava muito caro para distribuir, acabava custando mais do que o dobro nos supermercados. Hoje, com o Auxílio Brasil, que virou o Bolsa Família turbinado, você dá condição para a pessoa comprar, ela não precisa ganhar a cesta básica”, afirma Brandalizze.
Em relação às aquisições da Conab, ele acrescenta: “É um milho que não vai ficar barato para o governo comprar, terá de pagar um valor que o produtor se disponha a vender, que tem que ser acima do valor de exportação. E daí vai ter que colocar em estoque público ou pagar armazenagem para privado. Depois terá de carregar o estoque, o que vai custar mais de 1%, 1,5% ao mês. Tem o custo da Conab, de fiscalizar e manter esse estoque controlado. No futuro, quando for vender esse milho, pode estar velho, com baixa qualidade. Vamos pagar duas vezes, é um milho que vai custar muito caro para o erário”.
Conab admite: intervenção e regulação não deram certo no Brasil
É consenso entre analistas que o suposto efeito regulador de mercado pelas compras da Conab não existe. “Essas 500 mil toneladas nem cócegas fazem para uma safrinha de 100 milhões de toneladas. Para efeitos de mercado, o resultado é zero”, aponta Paulo Molinari, da agência Safras e Mercado.
Na prática, há uma confusão no discurso do presidente e dos gestores petistas à frente da Conab. Enquanto Lula afirmou ainda na campanha eleitoral que pretendia “fazer estoque para controlar o preço”, e tem insistido que a intervenção do governo pode diminuir a inflação, o presidente da Conab, Edegar Pretto, declarou querer “afastar as palavras intervenção e regulação, que remetem a outro tempo de um Brasil que não deu certo”. Em outros momentos, contudo, Pretto tem endossado o entendimento de que a Conab tem força para influir na inflação dos alimentos.
Ainda que gaste dezenas de milhões de reais, contudo, a Conab não conseguirá regular o mercado de commodities – a não ser causando desequilíbrio nas microrregiões em que intervir. “Se fosse possível criar um estoque para regular o preço internacional do milho, a China teria feito. Nem a China conseguiu, não somos nós que vamos fazer essa mágica”, pondera Felippe Serigati, professor da Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
Incompreensão sobre como funciona o mercado
Faltaria ao governo compreender mecanismos básicos, e cíclicos, de funcionamento do mercado. “Quantas vezes não vimos a inflação do tomate, a inflação do feijão? O preço sobe e no ciclo seguinte vai ter mais produtores querendo produzir feijão. O pessoal amplia a área, coloca mais tecnologia na produção, e como consequência aumenta a quantidade ofertada, fazendo que o preço retome sua trajetória de equilíbrio a longo prazo. A gente só precisa permitir que o mercado funcione, com regras para que haja mais competição, mas tem que deixar o mercado funcionar”, diz Serigati. "A gente não pode esquecer que o produtor é empresário. Ele vai plantar o que oferecer maior retorno para ele", enfatiza.
Isso não quer dizer que não haja formas eficazes de implementar a Política de Garantia de Preços Mínimos, que está na legislação brasileira. Para Serigati, essa política pode ajudar a evitar consequências mais sérias para um produtor que, ao plantar o milho, por exemplo, operava num ambiente de R$ 80 a saca e, quando faz a colheita e vai comercializar a produção, encontra esse mesmo milho operando a R$ 30 a saca.
“É uma bela bordoada. Provavelmente esse produtor vai ficar descapitalizado. E daí ou vai reduzir a área, ou vai tentar produzir usando uma tecnologia inferior, o que leva a um valor menor de produção, naturalmente. Então, para conferir um pouco mais de estabilidade para esse produtor que está numa situação bem mais apertada, existe o instrumento de política pública de preços mínimos que tem de ser executada”, aponta.
Formação de estoques públicos seria a pior opção disponível
Dentre as várias opções para intervir e ajudar o pequeno produtor, contudo, o governo estaria escolhendo justamente a pior. “Esse desenho de o governo comprar o grão, garantir a armazenagem e a qualidade do produto, se é que vai garantir, é antigo, ultrapassado e há muito tempo não se fazia. Não fazia porque a gente ficou muito tempo com os preços em patamares bem elevados, e também porque esse instrumento, de fato, é mais obsoleto”, diz o coordenador do mestrado profissional em agronegócio da FGV.
Exemplos de instrumentos mais eficientes de atuação governamental no mercado, quando os preços estão abaixo dos custos de produção, como o milho agora, seriam o Prêmio Equalizador Pago ao Produtor Rural (Pepro) e o Prêmio para Escoamento de Produto (Pep). Por meio dessas ferramentas, em vez de formar estoques físicos, o governo ajuda no custeio do frete para levar o alimento de uma região a outra. Ou, então, pode pagar um subsídio, completando o que falta do preço de mercado até o preço mínimo.
Na avaliação de Cleiton Gauer, superintendente do Instituto Mato-grossense de Economia Agropecuária (Imea), ligado à Federação da Agricultura do Mato Grosso (Famato), intervenções da Conab podem ajudar a equilibrar o mercado, amenizando situações extremas, em que o preço do milho ou fica muito elevado, como no ano passado, ou abaixo dos custos, como nesse ano. Ele admite que as 500 mil toneladas têm pouco efeito como estoque de passagem, mas podem funcionar como socorro pontual. “O ponto é que quando acontece uma coisa muito drástica, como quebra de safra no ano passado, ou excesso de produção, essas ferramentas precisam ser implementadas”, afirma.
Medida tem apoio de parte do setor agrícola
Na mesma linha argumenta Jeffrey Albers, coordenador do Departamento Econômico do Federação da Agricultura do Paraná (Faep), ao avaliar a volta dos estoques públicos da Conab. “Apesar de tímido, é um sinal de que o governo está de olho no que está acontecendo com o mercado, não está simplesmente deixando acontecer. Em médio-longo prazo, ter um estoque regulador pode ser benéfico para o setor. A gente veio de uma situação (no ano passado), em que os preços estavam muito altos e a pecuária foi penalizada. Naquele momento, se houvesse estoque regulador, poderia fornecer para os criadores de aves e suínos”, assegura.
Ainda que tenha apoio de parte do setor agrícola, uma política intervencionista de formação de estoques traz mais prejuízos que benefícios, na avaliação de Guilherme Bastos, que foi secretário de Política Agrícola do Ministério da Fazenda no governo Bolsonaro. “A questão toda é que 30 anos atrás o tamanho da safra brasileira era muito menor do que hoje. Então, usar essa ferramenta como instrumento de regulação de preço é algo fora de contexto. E daí que eu pergunto: quanto o contribuinte vai estar disposto a bancar numa estratégia como essa?”, questiona Bastos.
Para ele, o milho safrinha no Brasil só chegou aos 100 milhões de toneladas por causa da evolução da cadeia produtiva e da dinâmica de sua comercialização. “Tem um papel muito forte das tradings, fazendo contratos antecipados de aquisição. Isso dá segurança no plantio. O setor de proteína animal também tem que se profissionalizar e lançar mão de contratos antecipados de aquisição do principal insumo da produção deles”, afirma.
Como forma mais eficaz de a Conab atuar, Bastos também aponta os leilões de prêmio para escoamento da produção (custeio do frete) e a equalização da diferença do preço de mercado com o preço mínimo, em vez de formar estoques físicos.
Custo elevado e risco de deterioração dos grãos
Por outro lado, a disparada do uso de milho para produção de etanol no país e de DDG (ração animal), além do crescimento das exportações, tem ajudado a equilibrar as cotações em tempos de super safra, como agora. Ao formar sua própria “montanha” de estoques, o governo repete uma estratégia que já viu em anos anteriores milhares de toneladas de grãos se deteriorarem em armazéns públicos.
Qual o custo de manter esses estoques físicos? “O custo disso é o custo da Conab. É só ver a despesa do Orçamento da União com a Conab. Esse é o custo”, sublinha Bastos. Em 2023, o governo Lula destinou R$ 1,83 bilhão para a Conab no orçamento, dos quais R$ 787 milhões já foram executados, segundo o Portal da Transparência.
Contatada pela Gazeta do Povo para comentar a retomada dos estoques físicos do governo, a Conab encaminhou uma notícia de seu site, em que a medida é defendida por Pretto: “Vamos incentivar os agricultores a plantar e vamos garantir preço mínimo para a produção. Temos uma previsão de safra recorde de milho, mas os preços estão caindo. Então iniciaremos a compra pelo milho. Com essa ação da Conab, combatemos a inflação dos alimentos, visando levar comida à mesa de todos os brasileiros e brasileiras”.
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