Mesmo com a tragédia das enchentes no Rio Grande do Sul, a safra gaúcha de arroz, que atende 70% do consumo nacional, deverá ser apenas 1,24% menor do que no ano anterior, atingindo 7,15 milhões de toneladas. São estimativas oficiais, do Instituto Riograndense do Arroz (Irga).
A condição, portanto, deveria ser de tranquilidade no mercado. Deveria, se não fosse a ação do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) – considerada desastrada pelo setor produtivo – que baixou Medida Provisória autorizando a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) a importar um milhão de toneladas de arroz. O objetivo declarado foi o de “evitar especulação financeira e estabilizar o preço do produto nos mercados de todo o país”.
O efeito, no entanto, foi o contrário do pretendido. Após o anúncio do governo federal, em várias partes do país os consumidores correram às compras para estocar arroz, o que levou a Associação Brasileira dos Supermercados (Abras) a emitir nota assegurando que os estoques e operações de abastecimento do varejo estavam normalizados. A associação apelou, contudo, para que “as pessoas não façam estoques em casa, para que todos tenham acesso contínuo ao produto”.
Intervenção pode trazer prejuízos de longo prazo
A corrida aos supermercados foi apenas o dano mais imediato e visível da ação intervencionista do governo Lula. Analistas do setor dizem que a importação de arroz por via estatal poderá desestimular os produtores gaúchos, levando a uma redução da área plantada na próxima safra. Daí, sim, não haverá como evitar uma elevação das importações em 2025, e a preços mais altos do que os oferecidos no mercado doméstico.
Neste ano, de El Niño e com estoques apertados, os produtores já haviam plantado cerca de 10% mais de área, antecipando a probabilidade de perdas por efeitos climáticos. Como já mostrou reportagem da Gazeta do Povo, os preços em nível internacional estão sustentados devido à proibição da Índia de exportar o produto e à quebra em vários outros países produtores.
“Com preços competitivos e margens satisfatórias, naturalmente haveria aumento de área para 2025. Havia expectativa de voltar ao estado de normalidade, de equilíbrio. Mas esse choque de oferta (importação do governo), num momento em que os produtores gaúchos têm enormes prejuízos por conta dos alagamentos, só vai trazer mais desincentivo a uma cultura já bastante prejudicada”, aponta Evandro Oliveira, analista da agência Safras & Mercado.
Oliveira observa que os produtores de arroz do Rio Grande do Sul vêm de duas safras consecutivas castigados por secas ligadas ao fenômeno La Niña, além de elevados custos de produção. Nesse contexto, a importação estatal é um desincentivo. “Vai causar uma bagunça no mercado. Muitos produtores já estão com prejuízos e produtividade baixa. Daí vem esse choque de oferta, derruba o preço, e o produtor ficar operando em toda a temporada com margem negativa. É algo totalmente fora da realidade”, aponta.
Em nota técnica de análise, o Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea-Esalq/USP) não vê sentido na intenção do governo de "importar e disponibilizar a atacadistas e varejistas em regiões deficitárias". "Não parece haver lógica nesse processo, que pode acabar atrapalhando a dinâmica das transações privadas", pontua o Cepea.
Setor do arroz divulgou "nota à sociedade brasileira"
A dificuldade adicional criada pelo governo Lula levou entidades representativas da produção e da indústria do Rio Grande do Sul a divulgar uma “nota à sociedade brasileira”. No documento, o setor insiste que “inexiste risco de desabastecimento de arroz ao mercado consumidor”.
Segundo a nota, “uma possível diminuição da disponibilidade de arroz em razão das perdas de produtores afetados pelas enchentes que assolam o estado será, inevitavelmente, compensada pelo incremento da importação e perda de competitividade do arroz brasileiro no mercado externo”. Estima-se que o país deixará de exportar 500 mil toneladas, o que será mais do que suficiente para compensar a quebra na safra gaúcha. O consumo anual de arroz dos brasileiros está em torno de 10,5 milhões de toneladas, que é praticamente o mesmo volume do que é produzido internamente.
“Ao anunciar uma importação que pode chegar a um milhão de toneladas, o governo provocou na sociedade uma corrida aos supermercados, se imaginando que pode faltar arroz. Não há motivo algum para falar em desabastecimento", assegura Alexandre Velho, presidente da Associação dos Arrozeiros do Rio Grande do Sul (Fedearroz).
Importação estatal de arroz mostra "falta de sensibilidade"
"Este anúncio foi, na verdade, uma falta de sensibilidade, porque o nosso problema hoje não é quantidade de arroz estocada, mas dificuldade logística com o interior do estado e uma pane no sistema de emissão de notas do governo gaúcho. Mas a ligação do litoral gaúcho com os grandes centros está normal e temos bastante arroz para deslocar para o restante do país”, diz o dirigente.
Para Velho, há melhor destino para o dinheiro público do que empenhar R$ 4 bilhões para internalizar arroz pelas mãos do governo. “É um recurso que teria de ser empregado nas estradas, para reconstruir pontes, salvar famílias que ficaram sem casas, que perderam máquinas, tratores, colheitadeiras e o gado que existia nas propriedades. É, no mínimo, uma falta muito grande de sensibilidade das autoridades”, argumenta.
Na semana passada, ao justificar a proposta de importação de arroz pela Conab, o ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, ainda tentou acalmar os agricultores. “Neste momento, a medida vem para evitar qualquer especulação com o preço do arroz. Também já conversei com os produtores para deixar claro que não é para concorrer com o nosso arroz, até porque os produtores já têm para suprir a demanda nacional, porém, tem dificuldade logística. Com a dificuldade logística para abastecer, vem a especulação”, disse.
Na realidade, é praticamente impossível que a importação de um milhão de toneladas de arroz não mexa com o mercado interno. “Não tem como não concorrer. Isso pode provocar uma guerra de preços. Não é o produtor nem a indústria que controlam o preço de venda do produto. São regras de mercado, oferta e demanda, paridade em relação ao Mercosul, taxa de câmbio, tudo isso facilita ou dificulta a importação, além do preço internacional”, pontua Velho. Oliveira, da Safras e Mercado, diz que a única forma de diluir o impacto no mercado é se houver uma compra fracionada, ao longo de um ano.
Lula falou em trazer arroz de onde não tem: Venezuela e Bolívia
Cada vez que fala em intervir no mercado para colocar “comida barata na mesa dos brasileiros”, o presidente Lula costuma rechear suas falas com doses de equívocos e desinformação. Na semana em que começaram as enchentes no Rio Grande do Sul, por exemplo, Lula afirmou que “a gente vai ter que importar arroz da Bolívia, do Paraguai, do Uruguai, da Argentina para a gente baratear o preço do arroz e do feijão neste país”. Antes, ele já havia afirmado que o governo “deu uma vacilada” por não ter importado arroz mais barato da Venezuela.
Venezuela e Bolívia não são mercados exportadores de arroz e dependem de importações, inclusive do Brasil, para atender as próprias necessidades. “Faz uns 25 anos que a Venezuela não consegue produzir o arroz que consome. Eles importam muito arroz via Roraima, que internalizam contrabandeando em cima de caminhonetes durante a noite, na fronteira”, aponta o consultor Vlamir Brandalizze, para ilustrar que é impossível ser socorrido pela Venezuela nesse momento.
Em relação ao feijão, citado por Lula, os preços já caíram 43% em relação ao ano passado, após a entrada de uma nova safra cheia, o que tira o sentido de qualquer ação governamental para supostamente forçar a baixa dos preços. Por outro lado, o Rio Grande do Sul participa com apenas 2,2% da produção brasileira, e já estava com todo o feijão colhido quando chegaram as chuvas. “A população pode ficar tranquila, não vai faltar feijão este ano”, observa Marcelo Luders, diretor do Instituto Brasileiro do Feijão (Ibrafe).
Especulação de que governo trará arroz da China
A disposição do governo de importar arroz pode se transformar numa saga desafiadora. O Paraguai, principal fornecedor, teve quebra de 15% na safra e já comercializou boa parte com clientes europeus. No que sobrou, os produtores põem um preço “para não vender” de quase mil dólares a tonelada, segundo Oliveira, da Safras e Mercado. O Uruguai, por outro lado, também está tendo prejuízo com as chuvas. Quem poderá suprir parte da demanda é a Argentina, mas limitada a cerca de 100 mil toneladas. Restariam como fornecedores a Ásia e os Estados Unidos, no segundo semestre.
A temporada atual de arroz já começou com estoques baixos no Brasil, de menos de 500 mil toneladas. Após o anúncio de importação do governo, a indústria desistiu de importar 75 mil toneladas do grão da Tailândia. A conclusão foi de que, sem saber com segurança o volume a ser adquirido pela Conab, novas compras poderiam apenas inflar a oferta e prejudicar o mercado interno.
Há uma especulação no mercado de que os chineses possam estar preparando uma jogada, ensaiada com o governo Lula, para “ficarem bem na foto”. Apesar de não serem exportadores de arroz, os chineses detêm os maiores estoques mundiais. Poderiam abrir exceção e exportar arroz para o Brasil, num momento de calamidade, para ganhar simpatia e estreitar relações com o governo Lula. “É uma hipótese que surgiu, porque nos últimos dias temos sido procurados por mídias chinesas”, disse uma das fontes ouvidas pela Gazeta do Povo.
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