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Ciro x Holiday: como lidar com negros desobedientes num país de capachos?
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O rescaldo do caso Fernando Holiday, xingado gratuitamente de “capitãozinho-do-mato” pelo pré-candidato à presidência da República Ciro Gomes em entrevista à rádio Jovem Pan, mostra que existe apenas um tipo de negro reconhecido como ser humano e cidadão pelas esquerdas e pelo movimento negro no Brasil: aquele que obedece. Somente este, o que segue cegamente a cartilha, o que jamais se desvia da opinião pré-fabricada, tem o direito à dignidade humana e à honra. Os demais, negros desobedientes, recebem da Casa Grande o tratamento de praxe desde o início da colonização, com a cumplicidade dos que consentem por se omitir.

Conheço Fernando Holiday há alguns anos, desde quando ele gritava muito mais alto e com mais frequência do que grita hoje, com todo vigor de pulmões que a juventude lhe dá. Concordamos em algumas coisas, discordamos em algumas coisas, tenho muito respeito pela trajetória de vida dele. É uma grande vitória sair da Cohab de Carapicuíba para a vida pública no país da meritocracia hereditária. Nunca tentou me catequizar sobre seus pontos de vista, a recíproca é verdadeira.

Já tive de intervir pessoalmente, mais de uma vez, em situações nas quais ele foi chamado de “capitão-do-mato” e não tinham nenhuma relação com ser contra pautas do movimento negro. Esse é o xingamento preferencial toda vez que Holiday contraria alguém de alguma forma, curiosamente vindo com mais frequência de bocas que clamam para si o monopólio da virtude, da honra, da defesa dos oprimidos. Felizmente, em todas as vezes que agi – algumas ele sabe, outras não – as pessoas retiraram o que disseram, reviram suas posições.

Fernando Holiday experimenta na pele a dificuldade da esquerda – que crê ser este um defeito apenas da direita – de lidar com o diferente, com as discordâncias. “Especialmente no movimento negro”, diz:

São uma espécie de defensores dos negros que atacam os negros por conta dessa condição na primeira chance. Acho que isso se deve à falta de debate principalmente no Brasil em relação às políticas de luta contra o racismo e de luta contra o preconceito. (…) A própria sociedade de uma forma geral acabou entendendo que só havia uma visão correta de mundo com relação a essas questões relacionadas ao preconceito. – diz Fernando Holiday

O vereador analisa a reação das pessoas após a declaração de Ciro Gomes, que repetiu o xingamento mais ouvido por ele na vida pública:

A primeira impressão que fica quando se vê um candidato à presidência da República falando algo claramente racista em rede nacional é a do silêncio, a da não-reação, a de não saber como agir porque, teoricamente, na visão de mundo dos brasileiros, a esquerda é historicamente aquela que luta em favor dos negros, portanto eles teriam o direito de falar aquilo. Acho que isso não é algo com o que a gente deve se acostumar, é algo contra o que a gente deve lutar constamente. – argumenta Holiday

O vereador lembra do mea-culpa feito pelo pré-candidato republicano à presidência dos Estados Unidos, Ben Carson, que atualmente ocupa o cargo de Secretário de Habitação e Desenvolvimento de Donald Trump. Negro, o político é um papa da neurocirurgia mundial, foi o primeiro a separar gêmeos siameses unidos pela cabeça e inventou a cirurgia intrauterina em fetos. Em 2016, ao desistir da candidatura em favor da candidatura de Donald Trump, deixou o alerta: a questão do racismo existe, está presente e, no entanto, nunca foi tratada pelo Partido Republicano da forma adequada, ficou sempre monopolizada pelos Democratas.

Eu diria o mesmo em relação ao Brasil. Infelizmente, a direita ignorou esses debates, deixou que a esquerda tomasse para si essas bandeiras e o resultado que nós temos é esse de hoje, grandes expoentes da esquerda brasileira se achando no direito de utilizar do racismo para criticar alguém. – alerta o vereador Fernando Holiday

OS INTOCÁVEIS E O SILÊNCIO DOS COMPLACENTES

No caso, pouco importa qual seja o conceito de “capitão-do-mato”, se o vereador paulistano sentiu-se ofendido, se os negros brasileiros sentem-se ou não ofendidos com essa palavra, se Holiday defende ou não questões ligadas aos direitos da população negra, se concordamos ou não com as posições dele.

O fato é que, sem que o nome de Fernando Holiday fosse mencionado, um pré-candidato à presidência o traz em rede nacional para tratar apenas de um aspecto de sua personalidade: a cor da pele. Ele não é um vereador, um ativista, um fenômeno de social media, um rapaz que saiu da Cohab de Carapicuíba para a Câmara, nenhum aspecto conta além da cor da pele. É tão preconceituoso quanto se cobrássemos de Ciro Gomes apenas seu posicionamento como nordestino, ignorando seu passado, sua intelectualidade, sua família, todas as outras dimensões da sua personalidade.

Justiça seja feita, Ciro Gomes não criou nada diferente nem foi o primeiro a fazer o xingamento contra Fernando Holiday, apenas repetiu a expressão que as esquerdas têm utilizado para todos os negros que contrariam seus interesses desde a atuação de Joaquim Barbosa na Ação Penal 470, o Mensalão. É um posicionamento extremamente preconceituoso, que vai além da ofensa: quem nos contraria tem todos os aspectos de sua personalidade reduzidos a apenas uma dimensão, a cor da pele, pela qual passa a ser julgado. O mais curioso é este comportamento ser justamente o dos grupos que clamam para si o monopólio da defesa da igualdade racial.

A grande questão é como a expressão “capitão-do-mato”, que pode nem ofender quem a ouve, mas denota o desrespeito à dignidade humana por parte de quem a profere como xingamento, ainda é dita em público no Brasil em pleno século XXI. Simples: somos um país liderado por abusados ladeados por capachos cúmplices. Mesmo podendo, é raro alguém fazer com que o abuso e o desrespeito parem. Quem faz é estigmatizado.

As reações à declaração de Ciro Gomes foram frágeis, quase patéticas, típicas de uma sociedade acostumada a bajular os que parecem capazes de arroubos e abusos para proteger seus interesses. O partido de Fernando Holiday não se pronunciou. O Democratas se auto-intitula “o partido das novas ideias” e colocou um banner com um jovem negro, como seu filiado, o vereador paulistano, no centro da Convenção Nacional deste ano. Mas, na hora de agir, conta mais a intenção de fazer aliança presidencial com Ciro Gomes do que a coerência.

Apenas um deputado do partido, Sóstenes Cavalcante, manifestou-se da tribuna da Câmara, sem consultar o DEM e sem ter conversado previamente com Fernando Holiday. “Ofendeu o vereador chamando-o de ‘capitãozinho-do-mato’, referindo-se especificamente ao nobre vereador por ele ser negro”, disse. É este o ponto: a ÚNICA avaliação possível sobre o vereador é sua negritude?

O professor Irapuã Santana, assessor do ministro Luiz Fux no STF e no TSE, doutorando e mestre em Direito Penal e professor universitário, questiona a existência de liberdade para os negros que não seguem uma cartilha ideológica, estética e de comportamento no Brasil. Lembra que, quando Holiday foi eleito, um dos primeiros artigos escritos sobre ele tinha o título “quantos mandatos Fernando Holiday do MBL cumprirá até tornar-se negro?”. Talvez seja a hora de compreender que os mais de 100 milhões de negros brasileiros têm direito à liberdade de pensamento.

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Que emancipação é essa que não me dá o direito de agir de acordo com a minha livre consciência? Que democracia é essa, na qual não posso me filiar ao partido ou à corrente política que desejo?

Onde está a liberdade para os negros?

É justo termos que gostar somente de samba e futebol? É justo termos que raspar a cabeça para seguir a regra de boa aparência no trabalho?

Se os estereótipos são uma faceta do racismo, por que precisamos todos ter a mesma inclinação política, agir da mesma forma, lutar pelas mesmas coisas?

É preciso respeitar a individualidade e a liberdade de cada um. É necessário reconhecer a lógica diversidade existente dentro de uma população equivalente a mais de 100 milhões de pessoas e enxergar o quanto isso pode ser benéfico.

Devemos nos lembrar da famosa frase “posso não concordar com nenhuma das palavras que você disser, mas defenderei até a morte o direito de você dizê-las”. – argumenta o professor Irapuã Teixeira.

Não há possibilidade de convivência social pacífica quando adultos se calam diante de violações da dignidade humana. O Brasil vive uma confusão perversa entre o princípio da não-violência e a cumplicidade motivada pela covardia, ingrediente certo da canalhice. Não falo aqui de reações exacerbadas, de medidas judiciais, de chamar a polícia, falo de dignidade humana, honra, coragem, princípios, artigos em falta na prateleira de quem cobra probidade dos demais. Diálogo, confronto verbal imediato, convencimento e defesa do ofendido são obrigações de quem não é cúmplice.

Sigo aqui os princípios da não-violência da voz maior dos direitos civis norte-americanos, que obteve os maiores frutos para a cidadania da população negra no nosso continente, o pastor batista Martin Luther King. A paz não é a ausência de conflitos, é a solução deles, é fazer cessar a ação dos maus, não permitir que eles vençam.

Talvez tenhamos de nos arrepender dessa geração. Não apenas pelas palavras virulentas e as ações violentas das pessoas más, mas pelo silêncio e pela indiferença aterrorizantes das pessoas boas que se sentam ao redor e dizem: ‘o tempo se encarrega’ – disse Martin Luther King em um discurso que serviu de base para seu livro ‘Por que não podemos esperar’

Quem cala consente. Não sejamos cúmplices, não admitamos mais que cúmplices possam se travestir de imparciais. Precisamos viver num país que respeite a dignidade de todos os 200 milhões de brasileiros, não apenas dos que se crêem donos do poder e das opiniões.

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