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Caso Aécio: entre o legalismo histérico e o jacobinismo vulgar
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Na votação da última terça que derrubou a decisão da Primeira Turma do STF sobre o mandato de Aécio Neves, o que menos importava era o destino do próprio Aécio, um cadáver político que anda. O que estava realmente em jogo era a separação de poderes e o respeito da letra fria da Constituição contra o voluntarismo irresponsável travestido de moralismo de butique.

Em “A Man For All Seasons” (1966), um dos melhores filmes de todos os tempos, o futuro genro de Sir Thomas More (1478-1535) diz a ele, numa discussão antológica, que quebraria todas as leis da Inglaterra para prender o diabo. Para o jovem e impetuoso William Roper, o demônio não mereceria o “benefício da lei”. O grande jurista, que se tornaria mártir e santo da igreja católica, levanta da cadeira e responde: “e quando a última lei da Inglaterra for derrubada e o diabo se voltar contra você, quem vai te proteger?”.

O Brasil tem uma Constituição em vigor, não custa lembrar. Longe de simpatizar com seu detalhismo intervencionista, seu paternalismo protosocialista e seu voluntarismo anacrônico, é a lei. Dar aos ministros do STF um cheque em branco para legislar ou, neste caso, cassar um mandato eletivo sem qualquer respaldo legal, é piscar o olho para o abismo. E quando você olha tempo demais para o abismo, como dizia Nietzche, ele acaba olhando para você.

Aécio pode e deve ser julgado por seus pares, como prevê a lei. Sua conversa nada republicana com Joesley Batista é, no mínimo, uma afronta ao decoro parlamentar. É preciso uma dose cavalar de inocência para acreditar na versão que o senador deu para justificar o pedido de “empréstimo” ao mais infame açougueiro do país. Aécio teve seu capital político praticamente aniquilado no episódio, mas sua debilidade não serve de subterfúgio para a criação de uma ditadura togada.

O Estadão, em editorial primoroso publicado hoje, classifica a decisão da Primeira Turma do STF de nada menos que “intolerável ameaça à própria democracia”. Está certo, como concorda qualquer um que ainda não foi seduzido pelo jacobinismo vulgar que busca cliques fáceis em tempos difíceis. O combate à corrupção não pode ser feito à margem da lei, não se combate a ilegalidade cometendo novas ilegalidades.

Ainda segundo o editorial do Estadão, “ao contrário do que pensam os indignados que viram na decisão do Senado a prova cabal da impunidade dos corruptos, a sessão de anteontem não julgou a conduta de Aécio Neves, suspeito de corrupção passiva e obstrução de Justiça. Não estava em questão se o senador tucano é culpado ou inocente dos crimes pelos quais foi denunciado pela Procuradoria-Geral da República. Afinal, Aécio nem mesmo é réu, ou seja, não tem do que e como se defender. Se o Senado resolvesse aceitar o afastamento de Aécio, como havia ordenado a Primeira Turma do Supremo, estaria aplicando pena antes que fosse ditado o veredicto. Isso só existe em regimes de exceção”. Aplausos de pé.

“E quando a última lei da Inglaterra for derrubada e o diabo se voltar contra você, quem vai te proteger?”

Não é possível que a defesa das leis, que devem ser alteradas, se necessário, dentro do arcabouço legal da democracia, seja sequestrada pelo histrionismo de um legalismo afetado que dá ares de cumplicidade com a corrupção à sanidade e à racionalidade. Até onde pude checar, não há nos dois lados da discussão qualquer simpatia especial por Aécio Neves, que pode e deve ser investigado e julgado pelo que é acusado, o que inclui o conteúdo das constrangedoras conversas com Joesley Batista na malfadada e já descartada delação negociada com Rodrigo Janot, de triste memória.

Em tempos de muito calor e pouca luz, confundiu-se a limitação dos poderes do STF com uma blindagem a Aécio Neves, uma narrativa pré-eleitoral que começa a ser preparada como ração ideológica para certa militância quadrúpede. Se a decisão da Suprema Corte é incoerente em relação a casos anteriores como os de Eduardo Cunha e Delcídio Amaral, coube ao Legislativo finalmente dar um freio ao abuso togado, antes tarde do que nunca.

Se você ainda não se convenceu, lembre deste trecho surrealista do voto do ministro Luiz Fux: “já que ele (Aécio) não teve esse gesto de grandeza (de deixar o mandato espontaneamente), nós vamos auxiliá-lo exatamente a que ele se porte tal como ele deveria se portar. Pedir não só para sair da presidência do PSDB, mas sair do Senado Federal para poder comprovar à sociedade a sua ausência de toda e qualquer culpa nesse episódio”. O cidadão Luiz Fux pode ter a opinião que quiser, mas não é possível que se casse o mandato de um senador com base apenas nisso.

O afastamento de Eduardo Cunha ao arrepio da lei só foi possível porque o ex-deputado não conta com a simpatia de ninguém e, em democracias frágeis, o casuísmo acaba por falar mais alto que o direito. Quando se abre “só um pouquinho” a porteira do ativismo judicial com o pretexto de cassar um notório corrupto, está chocado o ovo da serpente. Ontem foi Cunha, depois Aécio, o próximo pode ser qualquer um de nós. É a lei que dá limites, impõe ritos e regras e força uma disciplina aos poderosos de todos os lados.

O merecido sermão que William Roper recebeu termina com Sir Thomas More lembrando que a Inglaterra é um país erguido sobre as leis e se elas fossem derrubadas, sob qualquer pretexto, ninguém mais estaria a salvo: “sim, eu daria ao diabo o benefício da lei, mas pela minha própria segurança”. Uma lição eterna e que nunca deve ser esquecida.

 

 

 

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