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Liberar a “pílula do câncer” sem testes é fazer roleta russa com pacientes
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Com colaboração de Caroline Olinda:

Há questões que são políticas: quem deve ser o presidente, qual deve ser a taxa de juros, qual a pena para cada crime. Ou seja, é a sociedade que escolhe qual o melhor caminho. Se se arrepender, volta atrás. Mas há questões que não são políticas. Por exemplo, saber se um remédio funciona ou não. Trata-se de um assunto técnico, que deve ser debatido por especialistas.

A indústria farmacêutica pode ser regulada em vários sentidos. Podemos decidir quem deve ser dono de laboratórios, quais impostos essas empresas devem pagar e quem vai vigiá-las. No Brasil, decidiu-se que quem libera ou não um remédio é a Anvisa. Há um motivo para não se ter escolhido o Congresso Nacional.

As agências reguladoras se baseiam em regras específicas, em algo muito mais exato que as vontades dos eleitores e o desejo de agradar uma parte da população: os procedimentos científicos. Mesmo seguindo esse caminho, vez ou outra vemos escândalos, descobrimos que remédios que deveriam fazer bem podem fazer muito mal. Mesmo assim, o risco é muito menor com a Anvisa decidindo o que é seguro, baseando a decisão em testes e estudos, do que com políticos.

Mas eis que desde o ano passado um assunto se tornou moda: a fosfoetanolamina. A substância, desenvolvida por um grupo de químicos da USP, é tida por muitos como a cura do câncer. São vários os relatos de pessoas que tiveram tumores curados após tomar as pílulas. A droga é fornecida pela USP, obrigada por decisões judiciais a produzir e distribuir a substância.

Sim, substância. A fosfo, como é mais conhecida, não pode ser tratada como medicamento porque não passou por todos os testes necessários para ganhar esse título. Na verdade, no começo desta semana foi liberada a primeira etapa dos testes clínicos – com humanos — da substância, o que será feito pelo Instituto do Câncer de São Paulo em parceria com um laboratório farmacêutico.

É necessária a aprovação em pelo menos três fases de testes clínicos para a substância passar a ser chamada de medicamento. Nesses testes são avaliados vários aspectos da droga: segurança e eficácia são as principais. Em quanto tempo se tem uma resposta? Depende dos resultados que se obtenha. Mas é certo que as respostas não são para amanhã, muito menos para ontem, como desejam os pacientes de câncer — e isso é compreensível — e como os nossos parlamentares querem fazer parecer ser.

Nesta semana, os deputados aprovaram um projeto de lei que permite a fabricação e distribuição da Fosfoetanolamina no país. Pelo texto, que seguiu para análise no Senado, só poderão produzir a fosfo agentes licenciados pela autoridade sanitária. Além disso, os pacientes só poderão utilizar a substância se tiverem atestado médico que comprove que têm câncer e assinarem um termo de consentimento ou responsabilidade.

Mas quem fará o controle de qualidade da substância? E quem vai verificar se as declarações entregues pelos pacientes são mesmo verdadeiras? A proposta não especifica nada disso. Também não prevê se será feito um controle de preço dessa substância. Outra dúvida que fica no ar, mesmo não sendo registrada como medicamento, a Fosfoetanolamina deverá ser distribuída pelo SUS?

Pela lentidão do nosso processo legislativo, é possível que até termos essas questões resolvidas, já teremos as primeiras respostas sobre a Fosfoetanolamina. É bom lembrar que, além do Instituto do Câncer de São Paulo, o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação também criou um grupo de trabalho para avaliar a chamada pílula do câncer. A previsão é que os ensaios pré-clínicos sejam finalizados ainda neste semestre. Depois, deve começar a fase 1 dos ensaios clínicos. Para os estudos, foram reservados R$ 10 milhões.

Sem esses ensaios, sem esses procedimentos, é impossível saber os efeitos colaterais da droga. Ou até mesmo saber se, afinal, ela serve para alguma coisa. Os cientistas acreditam ser praticamente impossível que a droga seja a panaceia que alguns propalam. E pode muito bem ser que, num ato demagógico, os deputados, aproveitando o desespero de algumas pessoas, estejam fazendo mal a elas, com efeitos colaterais imprevisíveis, ou esperanças falsas.

O debate, porém, se reduziu a criticar a Anvisa (que nem tinha sido acionada para fazer a liberação) ou a dizer que se trata de um lobby da indústria farmacêutica contra os pacientes. Pode haver lobby, claro. Mas não é disso que se trata. Sem seguir os procedimentos, estamos brincando de roleta russa com a vida das pessoas.

Em tempo, a Anvisa divulgou nota nesta quarta-feira (9) criticando a aprovação da proposta. O principal ponto é justamente a falta de testes clínicos que comprovem a segurança e eficácia da Fosfo. Coisa exigida para qualquer substância que se pretenda registrar como medicamento.

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