• Carregando...
Quadro de Alfredo Roque Gameiro registra a chegada de Vasco da Gama às Índias.
Quadro de Alfredo Roque Gameiro registra a chegada de Vasco da Gama às Índias.| Foto:

Historiador britânico Roger Crowley narra em sua nova obra como um reino pobre e desprezado na Europa conquistou o posto de grande potência mundial no início do século 16

Inscrições em pedra deixadas pelo navegador Diogo Cão na costa da África.

Houve um período da história que um pequeno e pobre reino da Europa se lançou às águas do então desconhecido e misterioso Oceano Atlântico para dar início ao ciclo extraordinário de mais de 500 anos de expansão ocidental. Até então considerado a parte mais atrasada a Oeste do continente europeu, Portugal rapidamente se transformou no centro de um império global e abriu definitivamente o caminho para as forças da globalização que ainda hoje dão formato ao nosso mundo.

A epopeia portuguesa, cantada em versos pelo poeta Luís Vaz de Camões, na obra clássica Os Lusíadas, e tema de inumeráveis publicações mundo afora, agora é contada de forma espetacular e realista pelo historiador Roger Crowley, um estudioso britânico especializado em grandes impérios marítimos europeus.

A era histórica de Vasco da Gama pôs em movimento quinhentos anos de expansão ocidental e as forças da globalização que ainda hoje moldam o nosso mundo.

Em Conquistadores – Como Portugal Forjou o Primeiro Império Global, Crowley faz uma narração apaixonante, embasada num monumental acervo de registros históricos, das maravilhas e barbaridades que marcaram a aventura que levou os portugueses a percorrer toda a costa ocidental da África, dominar o Oceânico Índico para chegar às Índias e, de sobra, atracar em terras brasileiras.

O historiador retrocede aos séculos 13 e 14 para registrar que os chineses precederam os portugueses na exploração do Índico, mas ressalva que as frotas da China, apesar de infinitamente mais numerosas e estruturadas – com até 250 navios e 28 mil homens –, não tinham como missão conquistar novas regiões e espaços comerciais. Ao contrário, os portugueses tinham minúsculos navios, os quais podiam todos caber dentro de um dos juncos chineses, e um número reduzido de homens. No entanto, eram guerreiros e, quando encontravam resistência, já chegavam atirando com seus temidos canhões.

Os portugueses dominaram os oceânicos Atlântico e Índico.

A afirmação do reino

A largada para essa fantástica história aconteceu após a vitória de D. João I, o Bastardo – fundador da reinante Casa de Aviz –, contra o Reino de Castela, em 1385. Até então Portugal, com uma população que não ultrapassa um milhão de habitantes, era pobre demais até para cunhar suas próprias moedas de ouro. “As bases da economia eram a pesca e a agricultura de subsistência, mas sua pobreza era igualada apenas por suas aspirações”, observa Crowley.

Com a experiência de seus pescadores em enfrentar as águas revoltas do Atlântico – e alijado do centro de comércio e de ideias do Mediterrâneo, que tinham Veneza e Gênova como epicentro –, Portugal se lançou ao desconhecido em busca de riquezas e grandeza. Apenas trinta anos depois da batalha contra os castelhanos, em 1415, uma frota portuguesa navegou pelo estreito de Gibraltar e atacou o porto muçulmano de Ceuta, no Marrocos, uma fortaleza no Mediterrâneo. “A captura de Ceuta deixou a Europa pasma”, escreve Crowley.

Em três dias, os portugueses pilharam toda a imensa riqueza acumulada no local descrito como “a flor de todas as cidades da África”. E essa conquista avassaladora era só o começo da grande odisseia. Nas décadas seguintes, de acordo com a narrativa de Crowley, “os portugueses avançaram mais depressa e chegaram mais longe do que qualquer outro povo na história. A partir de um início estabelecido, eles seguiram ao longo da costa da África, rodearam o cabo das Tormentas e alcançaram a Índia em 1498; chegaram ao Brasil em 1500, à China em 1514 e ao Japão em 1543. Foi um navegador português, Fernão de Magalhães, que permitiu à Espanha circum navegar a Terra após 1518”.

Vasco da Gama, o grande herói dos descobrimentos portugueses.

Heróis e vilões

Essa saga de vitórias, conquistas e derrotas – recheada de violência, naufrágios, mitos, fantasias e sonhos – é povoada por uma infinidade de nomes de navegadores e lutadores. Vasco da Gama, o descobridor do caminho para as Índias, tornou-se o grande herói, mas muitos outros, como Diogo Cão, Pedro Álvares Cabral, Tristão Vaz Teixeira, Bartolomeu Dias e o já citado Fernão de Magalhães compõem a constelação de símbolos que hoje mais parecem personagens de uma fábula lusitana. Há ainda nomes como Afonso de Albuquerque – o César do Oriente, o Leão dos Mares –, um fidalgo, militar e o 2.º Vice-Rei e Governador da Índia Portuguesa, cujas ações militares, religiosas e políticas foram determinantes para o estabelecimento do Império Português no oceano Índico.

Menos cultuado que Vasco da Gama, o navegador Diogo Cão levou longe as caravelas portuguesas rumo ao Sul da África. Foi ele o primeiro a utilizar padrões de pedra no lugar das cruzes de madeira para assinalar a presença portuguesa nas zonas descobertas. Ao chegar onde hoje é Angola, em 1482, Cão plantou o padrão de pedra com a seguinte inscrição: “Na era de 6681 anos da criação do mundo, há 1482 anos do nascimento de Nosso Senhor Jesus, o mais Alto e Excelente e Poderoso príncipe, rei d. João II de Portugal, enviou Diogo Cão, escudeiro desta Casa, para descobrir esta terra e plantar estes pilares”.

Como a bandeirola dos EUA fincada em solo lunar, pela missão Apollo, os padrões de pedra simbolizavam um ato de posse. Representavam a conquista portuguesa ao longo da costa ocidental da África, em busca do tão sonhado caminho marítimo para a Índia.

As expedições eram modestas, com dois ou três navios, mas armadas e equipadas o suficiente para delinear o continente, deixando suas marcas “nas costas desertas da Mauritânia, os luxuriantes litorais tropicais da região que eles chamaram de Guiné, a terra dos Pretos, e os grandes rios da África equatorial: Senegal, Gâmbia e rio Grande”.

“Foi uma tarefa difícil carregar as pedras nas costas, e cada homem era trabalhador, assentador de tijolos e pedreiro. […] O forte foi construído com nossas armas sempre ao nosso lado, no insuportável calor do sol, porque a posição desse país é dois graus ao norte do equador. A terra é no nível do mar e pantanosa, habitada por animais selvagens, e isso produz um grande fedor e ar insalubre. Não tínhamos nada para comer além de arroz, e o resultado foi que nossos homens ficaram doentes. […] Não ficou um homem que não tivesse sofrido de uma febre diabólica, de modo que havia homens mortos nas barracas do capitão durante dois ou três dias, porque não se encontrava quem os enterrasse. Fiquei doente no começo de outubro e durante cinquenta dias tive uma febre contínua, tão severa que fiquei completamente inconsciente.”

Relato de Afonso de Albuquerque, o Leão dos Mares, sobre a conquista de Malaca, ponto mais oriental do comércio índico.

D. João II, um grande incentivador das navegações.

Religião e aventura

Católicos, os monarcas portugueses trabalhavam em íntima ligação com a Igreja e o papa. “Numa Europa que se sentia cada vez mais ameaçada pelo islã militante […],  eles (portugueses) obtiveram do papado concessões espirituais e financeiras, além de direitos territoriais sobre as terras exploradas em nome de Cristo”, escreve Crowley.

Além disso, os portugueses cultivavam um desejo de grandes feitos e conquistas. O sonho de aventura era alimentado por “histórias de viajantes desde os tempos mais antigos, imagens confusas de grandes rios que penetrariam o coração da África, boatos fabulosos sobre tesouros e rumores de poderosos monarcas cristãos – especialmente um rei chamado Prestes João –  com os quais seria possível forjar uma aliança contra o mundo islâmico”.

Depois de Diogo Cão, o escalado em 1486 por D. João II para avançar ainda mais para sul da costa africana foi Bartolomeu Dias. Os homens destemidos comandados por Dias enfrentaram os ventos fortes do sul da África e se consagraram como os primeiros a contornar o Cabo da Boa Esperança e chegar ao Oceano Índico. Apesar do grande feito, Dias não conseguiu a proeza de chegar às Índias.

Se D. João II, o “Príncipe Perfeito”, morreu sem comemorar a abertura de uma nova rota com o Oriente, o feito caberia a D. Manuel I, O Venturoso. E o homem escolhido para cumprir missão tão espetacular foi Vasco da Gama.

Manuel I enfrentou a oposição das classes nobres – que viam muitos riscos e nenhuma glória na nova aventura – e se impôs. Vasco da Gama não era a primeira opção para a empreitada, mas como seu irmão, Paulo, o escolhido, ficou doente, ele acabou assumindo a viagem.

Portugal havia chegado ao topo na indústria da navegação e de armas, produzindo canhões, azagaias, escudos, placas peitorais, mosteiros, arcos, lanças, além chumbo. Com a experiência de anos na navegação e a capacidade industrial, o pequeno reino montou as “naus” que iriam vencer os violentos mares bravios.

Rumo à grande conquista

“Oito de julho de 1497. Um sábado. A missão de redescoberta da Índia, ‘escondida durante tantos séculos’. O dia, consagrado à Virgem Maria, tinha sido escolhido por astrólogos da Corte como auspicioso para a partida. Um mês antes, o papa tinha concedido a Manuel a propriedade perpétua das terras conquistadas dos infiéis que outros reis cristãos já não tivessem reivindicado. Pessoas saíram em bandos de Lisboa para a despedida de seus amigos e parentes”, narra Crowley ao descrever a partida de Vasco da Gama.

A jornada interoceânica foi marcada por incontáveis contratempos. Doenças (principalmente escorbuto, por falta de vitamina C), emboscadas de povos nativos onde a frota ancorava no litoral africano, tortura, luta contra povoações inteiras e tempestades em alto mar fazem parte do enredo.

A chegada ao lugar almejado aconteceu 309 dias depois da partida de Portugal. “Tinham navegado 19 mil quilômetros e já haviam perdido muitos homens. Para trás ficava uma viagem muito mais longa, décadas antes, até as primeiras explorações do príncipe Henrique, o duro caminho pela costa da África, as explorações fluviais, os navios perdidos, as gerações de homens que tinham navegado e morrido. Essa primeira visão borrada da Índia se destaca como um momento significativo na história do mundo. Gama pusera fim ao isolamento da Europa. O Atlântico já não era mais uma barreira; tornara-se uma via expressa ligando os hemisférios. Aquele era um momento notável no longo processo de convergência global”, escreve Crowley.

Portugal, um pequeno reino, montou uma grande indústria naval. Wikipedia

Domínio português

Com a imersão na África, Portugal havia se abarrotado de ouro e pedras precisos. Com a descoberta da rota para às Índias, o reino definitivamente abriu as portas para a conquista sobre os governantes muçulmanos e a dominação do comércio de especiarias.

O impulso foi tamanho que menos de um ano depois do retorno de Vasco da Gama, uma frota muito maior estava pronta para partir para estabelecer o domínio e as bases comerciais com a Índia. Liderada pelo fidalgo Pedro Álvares Cabral, a grande missão teve como desfecho a descoberta das terras tupiniquins, em 1500. A obra de Crowley explica que o Brasil não foi descoberto por acaso e destaca a ousadia e habilidade dos exploradores navegantes portugueses em busca de novas rotas e novas terras.

Nas décadas seguintes, os navegadores portugueses travaram grandes batalhas até estabelecer o sobre o comércio marítimo sobre o Índico e estabelecer sua hegemonia no Atlântico Sul. Quem aceitou a submissão e os negócios nos termos portugueses foram poupados; quem resistiu enfrentou a fúria e as armas até serem subjugados.

Olhando aquele período 500 anos depois, sobressai uma jornada marcada por coragem, ambição, curiosidade, fantasias, punições, inveja, fanatismo religioso e muita violência. Uma epopeia que transformaria o mundo para sempre.

Trecho extraído do capítulo sobre a viagem de Vasco da Gama às Índias

“No dia 11 de janeiro de 1498, eles chegaram a um pequeno rio. Imediatamente sentiram ter entrado num mundo diferente. Os grupos amontoados de pessoas altas que vieram ao encontro deles não pareciam nem um pouco com os khoikhoi. Não tinham medo e receberam os homens brancos de forma hospitaleira. Eram do povo Banto, com os quais os intérpretes conseguiram estabelecer algum tipo de comunicação. Água foi levada a bordo, mas a estada não podia se prolongar, uma vez que o vento estava favorável. Lá pelo dia 22 de janeiro eles alcançaram uma costa baixa, com densas florestas, e o delta de um rio muito mais largo, nos quais espreitavam croco­dilos e hipopótamos. ‘Pretos e bem-feitos’, pessoas se aproximaram em canoas para vê-los e comerciar, embora alguns de seus visitantes, descritos no diário como ‘muito altivos, […] não deram valor a nada que lhes demos’.

A essa altura, a devastação do escorbuto tinha avançado, e grande parte da tripulação se encontrava em estado apavorante. Suas mãos, pés e pernas estavam monstruosamente inchados; as gengivas, sanguinolentas e pútridas, cresciam por cima dos dentes, de modo que eles não conseguiam comer. O cheiro saído da boca era intolerável. Os homens começaram a morrer. Paulo da Gama os confortava cuidando dos doentes com seus próprios suprimen­tos médicos. O que salvou a expedição inteira da aniquilação não foram os cuidados de Paulo nem o ar saudável, como alguns acre­ditaram, mas, acidentalmente, a abundância de frutas que cresciam nas margens do rio Zambezi.”

 

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]