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A comunidade perdida
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Divulgação

São favas contadas – a “tragédia de Santa Maria”, expressão pela qual ficará por certo conhecida, há de gerar uma torrente de conversas nas salas de aula. Foi assim com o 11 de Setembro, para citar um dos fatos que deixaram o mundo em polvorosa. E transformar o sucedido em ponto escolar nada tem de oportunismo.

O pedido de que se fale da morte de 234 jovens na Boate Kiss está expresso na fala dos pais, amigos e sobreviventes. Dizem com voz embargado – “temos de lutar para que isso não se repita mais…”

A declaração, aliás, é clichê em toda e qualquer tragédia. Basta aparecerem os repórteres de tevê e pimba, sai a frase feita. Os estudiosos dos mecanismos da memória, como, Paolo Rossi, autor de O passado, a memória, o esquecimento (Unesp, 2010) são pródigos em afirmar que “nessas horas” recorremos não a um pensamento original, como é de se esperar, mas ao sentimento comum àquele que nos rodeiam. Passamos a contar uma história coletiva, não propriamente fidedigna, mas passada na régua.

Eis a questão. Quando o ocorrido em Santa Maria começar a ser tratado na sala de aula, o episódio tende a se desvincular das amarras da mesmice e ganhar sentidos. Será tema para tantas batalhas do conhecimento – para tratar da juventude, da violência, da ética, do civismo, da saúde. Mas um tema paralelo, em particular, há de se impor: o da comunidade.

Chama atenção no noticiário a informação de que caravanas de médicos, enfermeiros e psicólogos se mandou para Santa Maria, sem data para voltar. Atendem parentes das vítimas. São hospedados por cerca de duas mil famílias. Os relatos sobre o clima de solidariedade que se impõe, pouco a pouco, por sobre o cinza, é constante, mostrando não ser a impressão de um ou outro repórter, mas um fato tão eloquente quanto o próprio número de mortos e feridos.

Fico pensando em como tratar isso em sala de aula. Recorri ao livro Comunidade, uma das tantas joias raras do sociólogo Zygmunt Bauman. Logo às primeiras páginas ele dá um banho de água gelada. Diz que não existe mais comunidade. Que a sociedade líquida, expressão que lhe é cara, afirma a individualidade e nega o coletivo. Apresenta o outro como um perigo.

Quando estamos prontos a lhe perguntar por que, então, fala-se tanto em comunidade nesse século 21, ele mesmo se antecipa – a comunidade é como o mito do Éden. Nunca mais vamos recuperá-lo. Já perdemos a inocência. Tornou-se mais um ideal do que uma realidade possível. Volto a Santa Maria. Os gaúchos não recuperaram a ingenuidade perdida, é claro, mas precisam acreditar num mundo melhor. Do que contrário, não suportarão a dor desses dias. Suspeito que começaram a construí-lo por esses dias.

A escola, um dos espaços em que se tenta reinstalar o Éden perdido, entende como poucos o que acontece por lá. Saberá interpretar a realidade que se impõe por sobre a surrealidade. E ajudar a redefinir o termo comunidade.

>> José Carlos Fernandes é jornalista, doutor em Literatura Brasileira, professor nos cursos de Jornalismo da PUCPR e UFPR.

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