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Foto: Kirill Kudryavtsev/AFP
Foto: Kirill Kudryavtsev/AFP| Foto:

Eu bem que tentei, juro. Mas não consegui. Meu desencanto com o futebol não consegue vencer o piá que em mim ainda bate bola na garagem da casa da infância e pulava cedo da cama para correr e ler os cadernos de esportes dos jornais durante o café da manhã, especialmente os cronistas esportivos. Até me esforcei aqui para não acompanhar (muito) a Copa do Mundo, mas quando se tem dois piás em casa mais do que animados, com álbum de figurinhas completado, tabela feita em cartolina pendurada na sala, que na abertura pedem para faltar à aula, enfeitando a casa com bandeiras de países e não perdem um jogo, com o mais velho deixando de brincar no recreio para assistir à partida da vez pelo celular, aí não há como não voltar a ser aquele guri que acompanhava tudo e ainda via reprises. Sim, estou assim, insuportável. Pergunte à minha esposa.

Sei que a impressão que quase todo mundo nesse meio do futebol passa é a de que são todos “mercenários”, interessados apenas em grana e autoimagem conferida no telão. Mas quando é Copa do Mundo vemos que não é bem assim. Com tanta entrega de tantos jogadores na Copa do Mundo não consigo me convencer de que apenas dinheiro os motive a tanto assim. Ainda há esperança, portanto. Veja o exemplo do argentino Di María, antes da final de 2014 contra a Alemanha. Estava seriamente machucado, com o Real Madrid, seu clube à época, mandando uma carta obrigando a Argentina a não escalá-lo. Di María rasgou a carta sem nem ler e disse ao técnico: “Se eu quebrar, então me deixe continuar quebrando. Não me importo. Só quero poder jogar”. Não acredito Di María seja exceção. Histórias assim são até comuns, aliás. Quem não se lembra de Ronaldo em 1998, voltando do hospital depois daquela crise de saúde misteriosa e não deixando opção a Zagallo senão colocá-lo para jogar a final contra a França?

Ao lembrar e conhecer melhor a história desses e de vários outros melhores jogadores do mundo, fui redescobrindo que o verdadeiro negócio do futebol não é o dinheiro abundante ou mesmo a fama e a glória. Todas essas coisas importam, claro, mas são consequência. Veja o melhor jogador do mundo na atualidade. Talvez nenhum outro jogador na história do futebol foi tão obcecado por sua imagem e por ser o melhor, em vencer, quebrar recordes, somar títulos do que Cristiano Ronaldo, certo? Pois então, vim a saber que, desde que virou pai, o gajo vem jogando por algo maior e melhor. Depois de o Real Madrid ter sido campeão da Champions League em 2017, contra a Juventus, seu filho entrou no campo para festejar com ele: “Seguramos o troféu juntos e depois passeamos pelo campo de mão dada. (…) É óbvio que a minha missão continua a ser a mesma de sempre. Quero continuar a quebrar recordes no Madrid. Quero vencer o maior número de títulos possível. É algo que faz parte da minha natureza. Mas aquilo que ficará para sempre comigo do meu tempo no Madrid, e que certamente contarei aos meus netos quando tiver 95 anos, é o que senti ao caminhar sobre o relvado de mão dada com o meu filho. O passeio dos campeões. Espero que o voltemos a fazer em breve”. E voltou mesmo.

Outro exemplo. A essa altura todo mundo já conhece a história de vida do Lukaku, o centroavante belga que se tornou notícia por toda parte mais por causa da sua biografia do que por sua ótima atuação nesta Copa. Passou fome na infância e, ainda menino, fez uma promessa para si, sua mãe e seu avô, que dias antes de morrer lhe pediu que cuidasse de sua filha, mãe de Lukaku. Sempre jogou futebol para cumprir essa promessa, a de nunca mais passar fome, nunca deixar sua mãe desamparada. Cumpriu-a com louvor, já resolveu a vida material dele, da mãe, da família toda, mas continua a jogar por ela, pelo seu avô, por algo muito maior do que grana e títulos: “Eu realmente queria, mas queria muito que meu avô estivesse aqui para testemunhar isso. Não estou falando da Premier League. Nem do Manchester United. Nem da Champions League. Nem das Copas do Mundo. Não é disso que estou falando. Eu só queria que ele estivesse aqui para ver a vida que temos agora. Gostaria de ter mais um telefonema com ele, e fazê-lo saber… ‘Viu? Eu te disse. Sua filha está OK. Não tem mais ratos no apartamento. Nunca mais dormiremos no chão. Não há mais stress. Estamos bem agora.’ Estamos bem…”

Histórias assim existem aos montes no futebol. Quem acompanhou a série feita pelo Jornal Nacional dias antes de iniciar a Copa, mostrando um pouco da história de nossos jogadores, sabe que vários ali viveram situação similar à de Lukaku e jogam por suas famílias antes e acima de tudo. Um bom exemplo é o do zagueiro Miranda, que perdeu o pai quando tinha 11 anos de idade e, logo depois, seu irmão mais velho e seu ídolo, que jogava futebol e bem. No velório do irmão, prometeu à sua mãe que seria como o irmão. Cumpriu a promessa e hoje ajuda demais a família, tendo dado casa para cada irmão que casou (teve ao todo 11 irmãos, contando o falecido), além de cuidar muito bem de sua mãe.

Dessas histórias, a que mais me comove é a do polonês Jakub “Kuba” Błaszczykowski, que está já em fim de carreira, mas jogando pela Polônia nesta Copa. Kuba publicou sua autobiografia em 2015 e é uma história belíssima. Aos 10 anos testemunhou seu pai assassinando sua mãe, que morreu em seus braços. Somente uma coisa lhe salvou depois disso: o futebol. Em seu livro, disse: “Enfrentei muitos problemas na minha vida. Sei de tudo pelo que passei e já vi o pior. O futebol me ajudou a superar. Foi o meu primeiro amor. Graças a Deus posso estar sentado aqui hoje e falar sobre tudo”. E jogar bola. Toda vez que Kuba faz um gol, se ajoelha no gramado, apontando para o céu em memória e homenagem à sua mãe.

Como colocar preço nessas coisas? É o que me dá esperança e me faz não desistir de vez do futebol, mesmo quando faz tempo pareça ter se tornado mais um negócio do que outra coisa. Mas ainda não se transformou apenas nisso, em apenas negócio. Seria ingenuidade minha ter esperança de que uma Copa do Mundo seja capaz de comover os Petraglias da vida de que o futebol só é negócio quando não é só negócio? Provável, mas minha fé nos deuses do futebol foi reanimada ao ver meus piás como eu fui um dia. Agora me dê licença que vai começar a reprise de Egito e Arábia Saudita e não posso perder um jogo desses.

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