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Floresta, lama, praia e uma iniciação na Ordem Secreta dos Ciclistas do Telégrafo
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DSC_8598Há entre os cicloturistas quem divida a humanidade em dois grupos distintos: aqueles que já pedalaram a Trilha do Telégrafo e os que não a pedalaram. Os que assim o fazem, deferem seu mais profundo respeito apenas ao primeiro (e seleto) grupo.

E não é para menos. Poucos são aqueles que já encararam o Telégrafo, um dos trechos mais difíceis, desafiadores e exuberantes que pode ser pedalado neste país. Diz a lenda que a Trilha do Telégrafo é onde o filho chora e a mãe não vê. Onde os homens se separam dos meninos. Onde você aprende, pela dor, que seus limites físicos, psicológicos e mecânicos vão além do que você sempre imaginou.

Por isso, aos que cumprem essa prova iniciática com galhardia, superação, tenacidade, coragem e um verdadeiro espírito aventureiro, é dado o direito de integrar uma espécie de irmandade chamada pelos seus membros de A Ordem Secreta dos Ciclistas do Telégrafo.

Iniciado de forma autônoma em 2011, fiz papel de mestre-tutor do Oldy Mazzardo, um grande amigo cuja história me fez comprar uma bicicleta. No último fim de semana, pegamos nossas bikes, descemos a Serra do Mar e decidimos encarar o Telégrafo.

Pelo caminho entre Guaraqueçaba (PR) e Cananéia (SP) que rasga uma densa área de Mata Atlântica, além de alguns ciclistas, já passou também parte da História. Criada pela mãos dos escravos por ordem de Dom Pedro I em 1870 como Caminho do Imperador, o trecho foi mais tarde desbravado pelo Marechal Cândido Rondon para implantação de uma linha de telégrafo entre a capital Rio de Janeiro e Porto Alegre — o que lhe confere o nome atual.

Parque Nacional do Superagui

Parque Nacional do Superagui

Embarcamos com as bicicletas em Paranaguá, rumo à Guaraqueçaba. Como perdemos o barco das 9 horas, só tivemos uma segunda chance às 13 h, chegando ao município por volta das 16h30, após uma longa travessia pela baía de Paranaguá.

Com isso, a ideia de pedalar até o vilarejo do Ariri, em São Paulo, acabou se tornando inviável. No posto de informações turísticas perguntamos a distância de Guaraqueçaba até o vilarejo de Batuva e fomos informado de que seria de apenas 15 quilômetros. Concluímos que a distância era perfeitamente pedalável antes do pôr do sol e colocamos as magrelas na estrada.

Mas, quando o reloginho marcou 15 quilômetros, nada da vilazinha. Nem nos 20 km, nem aos 25 km. Só chegamos quando completamos 30 km, junto com os últimos raios de sol do dia. O vilarejo de Batuva se resume a um boteco, duas igrejas evangélicas, uma dezena de casas e um campo de futebol. E é só isso. Só isso mesmo!

No bar, conseguimos um pão com ovo de janta — colhido diretamente das galinhas do quintal da dona — e conhecemos os bêbados locais, com quem ficamos proseando e ouvindo causos das figuras da região, como o finado Chico Mula, que ganhou o apelido após carnear uma mula para o churrasco da quermesse local. Demos muita risada com Felipe, um jovem que já estava na frente do bar desde cedo para tomar uns goles de cataia e comprar um maço de cigarros. Ele afirma já foi expulso de duas ou três vilas da região. Um potencial herdeiro do Chico Mula no folclore local!

Lama. Muita lama.

Lama. Muita lama.

Montamos acampamento em um gramado ao lado de uma das igrejas da vila. As duas estavam celebrando o culto de domingo, mas como a Assembleia de Deus era muito barulhenta, optamos pela outra, mais discreta.

Na manhã seguinte, caímos na estrada logo cedo. Após pedalar apenas alguns quilômetros, na divisa entre o Paraná e São Paulo, cruzamos no caminho com alguns palmiteiros saindo da mata com o carregamento transportado no lombo de mulas. Quando parei para tirar umas fotos, fui repreendido por um garoto que tocava a ponta, segurando um facão. “Não pode tirar foto”, disse ele, em tom ameaçador. “Pela lei, eu posso tirar foto do que eu bem entender. Você é que não pode tirar palmito da mata”, respondi, irritado.

Uma aventura digna dos mais bravos guerreiros.

Uma aventura digna dos mais bravos guerreiros.

No que ele resolveu voltar para trás, provavelmente para relatar o ocorrido para o outro palmiteiro mais velho, aproveitamos para apertar o pé no pedal para o meio da mata. Se os palmiteiros resolvessem dar cabo aos ciclistas petulantes, demoraria décadas até alguém achasse nossos corpos naquele fim de mundo.

Logo em seguida iniciamos um sobe e desce em meio a lama argilosa e pedras. O trecho é intransitável, exceto por por mulas e, eventualmente, ciclistas-mulas. O trecho hardcore é de apenas 12 quilômetros entre Batuva (Guaraqueçaba-PR) e a comunidade de Santa Maria (Cananeia -SP). Apenas uma ova! Atoleiros de lama negra, pontes de madeira quebradiças, brejo, mata fechada, riachos, pedras, subidas e descidas. É ali que cada um prova a que veio ao mundo: se para passear ou encarar desafios.

Em determinado ponto, há apenas uma espécie de passarela formada por troncos de madeira no meio do charco de lama. Pisar fora significa enterrar toda sua canela até quase a altura do joelho. Pedalar é tarefa simplesmente impossível, impraticável. Só mesmo empurrando a bicicleta. Mas todo o esforço é recompensado pela paisagem, o som da mata, o canto estridente das arapongas e os rios de água pura e cristalina da serra.

A estrada termina em uma escola da vila rural de Santa Maria. De lá até o Ariri são mais 30 quilômetros em estradas rurais desertas e paisagens igualmente deslumbrantes. O vilarejo paulista fica às margens do canal que separa os estados de São Paulo do Paraná, que deve ser atravessado com auxílio de uma voadeira.

Paisagem deslumbrante no Superagui..

Paisagem deslumbrante no Superagui..

Em uma padaria, paramos para tomar um café da manhã e sanduíche de pão com mortadela. Enquanto comemos, reencontro Eli, o bêbado local que me ajudou da primeira vez a conseguir uma carona com um barco para atravessar o canal. Pouco antes das 10h, ele pede algum dinheiro para comprar uma cerveja. Pago uma latinha, como sinal de gratidão à ajuda prestada anteriormente.

Desta vez, no entanto, contratamos por R$ 100 o barqueiro Paulinho, já que o plano é passar pela vila de Ararapira, no Paraná, antes de chegar à praia e pedalar rumo ao Superagui.

A vila de São José do Ararapira foi um dos 20 assentamentos fundados pela coroa portuguesa na Capitania de São Paulo nos idos do século XVIII. O vilarejo, que já teve importância estratégica abrigando centenas de famílias e teve até uma delegacia, hoje não passa de uma vila fantasma.

A ação da erosão do canal, somada à falta de emprego na região, foi expulsando pouco a pouco os moradores. Outros, pela idade, foram morrendo. Hoje sobram apenas a igreja e algumas casas abandonadas — abandonadas, inclusive pelo poder público paranaense, apesar de o local ser Patrimônio Natural da Humanidade e Reserva da Biosfera, título concedido pela Unesco.

Igrejinha da vila fantasma do Ararapira.

Igrejinha da vila fantasma do Ararapira.

Nas redondezas, não faltam histórias de assombrações, como a Loira Fantasma que perambula pelo local ou as criancinhas chorando no meio da mata. “É tudo história inventada para atrair os turistas”, confessa o barqueiro Paulinho, que fatura até R$ 150 para levar os aventureiros paulistas até o Ararapira. Na vila, visitamos o cemitério local, que guarda os pioneiros daquela terra e uma história de mais de dois séculos e meio.

De lá, seguimos de barco até o pontal do Superagui. Dali para frente, são quase 30 quilômetros pedalando por belíssimas praias desertas onde temos apenas a companhia de gaivotas, siris e o cadáver de um pinguim. O cenário deslumbrante é uma verdadeira recompensa depois de toda a aventura e sofrimento na trilha telegráfica.

A jornada é fechada com chave de ouro quando vemos aparecer no horizonte duas silhuetas, e damos conta ao nos aproximarmos que são Andreza (minha mulher) e Déia (mulher do Oldy) em duas bicicletas alugadas por elas no Superagui.

Uma glória digna dos guerreiros da Ordem Secreta dos Ciclistas do Telégrafo!

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