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Arte: Felipe Lima
Arte: Felipe Lima| Foto:

Durante o café da manhã, no Capão Raso, recebo a primeira má notícia do dia: comeram a saracura que tinha feito seu ninho no rododendro. Chateado, vou lá fora investigar. Nem sinal do corpo. Sigo o rastro de penas deixado pela vítima, enquanto rumino um último pedaço de cuque de banana. Estudo a cena do suposto crime, a escassez de provas materiais. Nada. Não encontro nenhuma evidência relevante, o que não me impede de apontar um culpado: foi o gato. Algumas coisas nunca mudam, e caso encerrado. Sempre haverá um gato.

Saio dar uma volta pelo bairro de infância, o sol e o fantasma da saracura em meus ombros. Fazia anos que não acordava na casa de meus pais, me percebo remoçado, mas a vizinhança é outra, poucas fachadas resistiram às demolições. Há o esqueleto da velha sapataria, o açougue de portas cimentadas, o bailão desativado. Às margens da Churchill e da República Argentina, os condomínios sobem e se multiplicam. Tento contar os prédios ao longe, mas sinto preguiça e, a fim de me conformar, parafraseio Lampedusa: para que tudo continue do jeito que sempre foi, é preciso que tudo se arruíne.

Da igreja, vaza a cantoria de costume. Prefiro não entrar, embora padeça de certa nostalgia dos ritos. Quando criança, matava as missas na banca da pracinha, onde comprei meus primeiros livros, coleções policiais baratas, em papel-jornal. A banca ainda existe, mas está fechada a cadeado. Me detenho diante dela, para ouvir melhor os hinos. Minha vida tem sentido cada vez que eu venho aqui. O povo de Deus no deserto andava.

Não há, no entanto, deserto nenhum. O povo, agora, caminha ou corre pelas canaletas do biarticulado, salva-se pela saúde. É uma procissão de atletas amadores. Bicicletas, patins, skates. Muita gente passeando com seus cães de prédio. Aliás, não vejo cachorro que não esteja encoleirado. Onde se meteram os guapecas do Capão Raso, aqueles que, à nossa passagem, avançavam latindo e abanando o rabo ao mesmo tempo?

Decido checar o movimento nas rápidas. Numa esquina, um velho me chama assobiando, plantado no meio-fio. Carrega uma sacola de pão e se apoia numa bengala. Pede ajuda, diz que não consegue voltar para casa, os pés incharam demais, a dor o paralisa. Eu o agarro pelo braço, um osso envolto numa manga de lã. Avançamos devagar, à sombra dos medalhões-de-ouro, e é como se eu conduzisse uma caveira através de uma chuva de pétalas. O velho geme a cada passo, e pergunto a ele por que saiu de casa tão machucado, é evidente que não está em condições de andar, não tinha quem lhe comprasse o pão? Ele se justifica: “Saí porque achei que dava”.

Não deu. Eu o deixo em seu portão, ele me deseja um bom domingo. Agradeço e me afasto, a saracura piando baixinho em meu ouvido: “O tempo já foi um rio, hoje é um banhado, é preciso atualizar Heráclito”. Cada um, vocês sabem, tem o papagaio que merece.

Passo ao largo de pastos e terrenos baldios, mas neles já não diviso as vacas e os pangarés de sempre. Também visito as rocinhas de feijão, abóbora e milho ao lado do terminal. Estão verdes e bonitas, e vê-las me alegra e surpreende, principalmente porque descubro, entre as folhas de um pé de couve, dois pintassilgos acasalando.

Mais adiante, na calçada, encontro três tocos de árvore. Sua derrubada me parece recente e aquilo me intriga. Num dos cernes, um artista de rua pintou uma carinha azul, triste, e me abaixo para examinar a obra de perto. É quando uma moça passa por mim, talvez voltando da missa, e me informa, indignada: “Eram ipês”.

Acredito nela e me ergo, também aborrecido. Sou agora bem mais alto que estes ipês mortos. Olho em volta e só vejo muros e outdoors. Ou melhor, de cima de um muro, alguém me espia. É um gato. Quem sabe o assassino da saracura do rododendro. Em meu ombro, a alma da ave até se arrepia. Digo a ela que se acalme e se acostume. Sempre haverá um gato.

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