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Por um teatro “novo”, contra o “antigo”
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Marcelo Elias/Gazeta do Povo
Alexandre França, Patrícia Kamis, Paulo Zwolinski e Preto: nova geração

Publico hoje no Caderno G impresso uma reportagem sobre os novos dramaturgos de Curitiba gestados no Núcleo de Dramaturgia do Sesi Paraná, que Marcos Damaceno coordena e Roberto Alvim orienta. As primeiras peças escritas durante o projeto acabam de ser lançadas em livro. São 17 obras, escritas por 16 autores, entre eles os quatro com quem conversei: Patrícia Kamis [(Em) Branco e Tempestade de Areia], Preto [Inverno], Alexandre França [(Você)] e Paulo Zwolinski [Como Se Eu Fosse o Mundo, a única já encenada, com direção de Alvim].

Eles me falaram das suas descobertas sobre a escrita teatral, que deve ser o mais pessoal e desatada de clichês possível, para ampliar a percepção humana. E comentaram o teatro feito em Curitiba atualmente, ainda muito preso a modelos de 40 ou 50 anos atrás. Leia trechos da conversa:

Vocês convivem no Núcleo de Dramaturgia, discutem as mesmas estratégias de escrita, leem os mesmos textos. De que modo isso traz questões recorrentes ao trabalho de todos?
Alexandre França – A maioria das pessoas ali tem seus grupos de teatro fora do núcleo, que acontece uma vez por mês. Retrabalham o que foi falado em sala de aula. Mas algumas coisas ficam, como a transubstanciação do sujeito, os vetores, a subjetividade.

Patrícia Kamis – A única coisa recorrente nem é temática. Como o Alvim traz dramaturgias de ponta pra gente ler e ideias novas, como a transubstanciação… (que é a questão do sujeito dentro da estrutura dramatúrgica: a fala dele vai se transformando em outro sujeito, numa mesma frase às vezes de repente não é mais ele falando). O que eu vejo mais recorrente, mas não em todos, é essa vontade de fazer escritas mais inovadoras que dialoguem com ideias mais recentes de Bernard-Marie Koltès (1948-1989), Valère Novarina (1947), Richard Maxwell, Gregory Motton (1961).

Alexandre – Um exemplo de transubstanciação do sujeito está naquela peça Quartett, do Heiner Mueller.

Paulo Zwolinski – Eu não faço parte de nenhuma companhia, escrevo e, tirando o Alvim, não tenho ninguém que vai apontar ou alterar alguma coisa no meu texto. A questão da temática, não que ela chegue a se repetir, mas nós estamos optando por temas tão densos, tão fortes, que é com o que estamos dialogando. A minha peça e a do Preto, se você analisar, têm muita coisa parecida, a questão do filho. Mas é outro caminho, se identifica e não se repete.

Preto – Como o Alvim cobra muito da gente, e quando se tem que escrever coisa muito densa, você vai para dentro de você e será único. Vai descobrir sua linguagem e sua forma de expressar. Mesmo que ele desse um tema cada peça seria única. Alvim valorizou a cada texto, desde o começo, a forma de escrever de cada um. Saía do “eu gosto” ou “não gosto” para outras questões e a gente aprendeu com isso a valorizar nosso trabalho. Demorei um ano para escrever uma peça de 23 páginas, foi difícil, mas aprendi muita coisa além de escrever uma peça, que é o ser humano enquanto artista.

Paulo – A melhor forma de exprimir a sua visão de mundo. Isso tem a ver na verdade muito mais com uma busca interna e com referências e trajetória de vida do que com essa troca de figurinhas de copiar o outro ou tentar criar estética de organismo único.

Patrícia e Alexandre, vocês tinham peças feitas antes de entrarem no núcleo. Como sua maneira de escrever teatro se alterou desde então?
Patrícia – Eu antes escrevia tentando me encaixar em determinada forma, lia as peças: personagem tem que ser dessa forma, colocar rubricas… O Alvim me falava: “não vai por aí não, muito clichê”. Ele foi limpando e eu comecei a desenvolver realmente a minha forma de escrever. Se você vir nos meus livros, são formas que talvez as pessoas até não entendam e não vejam como dramaturgia. Mas ele soube valorizar o que em mim era peculiar. Em vez de escrachar, ele falou que se isso que estava dentro de mim, esse era o caminho. Talvez não possa fazer uma crítica agora, mas daqui a dez anos possamos refletir sobre. Tempestade de Areia é um texto que eu não sei como faria de forma tradicional, o que eu gostaria de escrever é dessa forma que eu encontrei. Ele me disse que não sabia o que dizer sobre meu texto, mas que estava finalizado. Eu até agora estou insegura com o texto, quem vai encenar, porque se não for encenado não vai se transformar em teatro. É um incentivo à nossa singularidade.

Tempestade de Areia tem três vozes, o homem, a mulher e a tempestade. As intenções de fala são sugeridas pelos tamanhos das fontes do texto. E a movimentação em cena é sugerida pela disposição gráfica do texto, que se empilha e se enovela. Você pensou em como ele seria encenado?
Patrícia – A gente entrou em uma grande discussão que é: os nossos atores precisam de uma nova escola de atores, de diretores e encenadores que tratem eles como adulto e não digam “luz abre em foco no ator, uma cadeira, uma mesa e uma janela”. Você faz o que você quiser, é livre. Eu, como dramaturga, queria dizer isso. Nas nossas leituras (durante a mostra realizada no Festival de Curitiba), o Márcio Mattana (que dirigiu o outro texto de Patícia) falou que é muito poder para um diretor. Se percebe o quanto os diretores estão acostumados a serem mimados com rubricas.

O que diferencia Tempestade de Areia de um texto literário, sendo muito gráfico, e o faz teatral?
Patrícia – É a questão da palara falada. A partir do momento em que o ator fala e não narra sai do campo da literatura.

Você como atriz se imagina representando um texto desse?
Patrícia – Eu não sou atriz que sei me dirigir. Um texto desse eu não sei como faria, precisaria de um diretor para me ajudar a construir alguma coisa, mas eu embarcaria. Com o Alvim (em Como Se Eu Fosse o Mundo), foi uma forma de atuar diferente da que eu aprendi, cheguei ao final do trabalho pensando como era importante conhecer coisas novas.

Alexandre – O texto da Patrícia só ganha potencialiadade como dramaturgia, pelas texturas de voz e movimentos e ações que propõe.

E para você, Alexandre, o que mudou na escrita dramatúrgica?
Alexandre – Minha referência para escrever meus textos teatrais era a literatura, mas o núcleo me ajudou a conhecer novas dramaturgias. Eu conhecia os clássicos mesmo. Habituè, que era Habituès, transformei por causa do nucleo. Eram dois alcoolatras terminais num boteco dialogando sobre a vida. Nas conversas com o (ator) Paulo Linhares, percebemos que a segunda personagem é uma espécie de consciência da primeira. Eu nunca tinha sacado isso. Para mim eram duas. O Otavio Linhares sugeriu que eu chamasse a Maia (Piva) para fazer e me veio um turbilhão do que o Alvim falava sobre a projeção das mulheres desse cara. É tentar ressignificar alguma coisa. Vai pro palco em setembro.

Você dirige também, isso pesa na hora de escrever?
Alexandre – Pra mim pesa porque já imagino uma direção na minha cabeça quando vou escrever. Me forço um pouco a me livrar disso, porque às vezes acaba se enjaulando naquele seu estilo de direção. É uma provocação que foi feita no núcleo.

Rogério Viana/Divulgação
Roberto Alvim, orientador do Núcleo de Dramaturgia do Sesi Paraná, dirigiu a primeira peça do dramaturgo curitibano Paulo Zwolinski.

Paulo – No meu caso foi uma baita fissura, estava desacreditando na arte do teatro. Coomeçamos com um workshop da Marici Salomão, que trabalha as formas clássicas. O Alvim vem e dá uma rasteira nisso, começa colocando questionamentos. Mas nada impede que a gente volte depois. Como Se Eu Fosse o Mundo é linguagem do Alvim, mas a segunda peça que escrevi, Limões, está muito mais para clássico que outra linguagem. E agora tô querendo (re)escrever Prometeu Acorrentado, tenho só algumas imagens. Me ajudou a saber quem eu sou no teatro, o que eu quero falar. A bagagem que eu tinha anterior me serviu de contraponto.

O Alvim é contra os discursos hegemônicos, fala da novela, que não é reflexo da sociedade, mas a sociedade é um reflexo da televisão. É uma outra função, aquela mercadologica. A que eu quero com meu teatro é de fazer pensar e pessoas saírem diferentes de como entraram.

Alexandre – Uma metáfora que Alvim usa é a dramaturgia ser um tapete que tenta ampliar a percepção do ser humano. Ele apresentou o livro do Lobo Antunes, O Meu Nome É Legião, que mexe com questões de espaço, tempo e a idéia de que não somos um, mas muitos, e subjetividade deve ser trabalhada à exaustão para experiencia humana ser ampliada.

Patrícia – A televisão tem a sua função, mas ao teatro não é todo mundo que vai. Nós temos responsabilidade de fazer um trabalho mais reflexivo para aquele público, acabar com maniqueismo, porque ser humano é realmente complexo.

Preto – O teatro tem que vir para mostrar que o ser humano é tanta coisa e pode ser tanta coisa nova, que intuitivamente a gente sabe mas não consegue explicar. Com o núcleo, a nossa evolução é muito grande artisticamente. Talvez na prática ainda não se mostre na obra o quanto cada um se quebrou e se construiu. Cada um é maior que a obra, que com o tempo vai solidificando. Mas, nesse exato momento, talvez a gente não consiga transmitir tudo aquilo que conseguiu perceber do ser humano. Isso vai se refletir nos próximos 5 ou 10 anos de cada um de uma maneira muito forte.

Patrícia – Eu, o Preto e outras pessoas do núcleo, espetados pelo Alvim, estamos criando uma oganização sem fins lucrativos para reunir esses dramaturgos. POrque o Sesi faz um trabalho fenomenal que incentiva a escrita, mas não consegue bancar temporadas. E para os dramaturgos é imprescindível que os textos sejam encenados.

Qual o olhar de vocês sobre dramaturgia feita em Curitiba fora do núcleo?
Preto – A gente precisa urgentemente mostrar e criar dramaturgias de linguagens diferentes das que estão sendo feitas aqui. Tem muito trabalho reverenciado em dramaturgia muito antiga, estamos com pouca coisa nova, pouquíssimas singularidades. No teatro de Curitiba precisa entrar ar novo, autores, diretores novos, que já existam mas voltem seu olhar para novo. Nossa dramaturgia e nosso teatro estão muito antigos. Ator tem que ser retreinado. Diretores que estudem, se atualizem. Se você faz algo novo, é malhado que aquilo não é dramaturgia. Então precisamos de novos trabalhos para formar plateia e uma nova classe teatral para a dramaturgia que quer falar da gente e de como a gente pensa, porque essa aí parece que eu já vi nos livros de teatro de 40 anos atrás.

Como foi a experiência do contato com outros diretores nas leituras e na encenação das peças de vocês?
Patrícia – Choque. Na minha leitura houve. O Mattana é extremamente estudioso, mas sentiu que talvez precise de outra forma de encenação para dar conta dessa nova dramaturgia. No Como se Fosse o Mundo, o choque foi em relação ao público.

Preto – O comentário que a gente ouviu de outro ator é que não conseguia ver o rosto do atores. É uma visão rasteira de trabalho. Se você vai para ver o rosto do ator, o que está fazendo ali? É um questionamento tão banal. Muitas vezes o público espontâneo saca mais do que as pessoas que fazem teatro e estão muito viciadas. Não quer dizer que o teatro daqui é mal feito, mas o olhar pode ser por outro caminho. Vamos fazer outra coisa, ter outra impressão de ser humano, não precisamos rever isso que se vê na novela. Graças a nosso enlatamento americano, a visão é de ritmo ritmo imagem imagem.

Não adianta uma dramaturgia nova e atores interpretando de jeito antigo. A gente viu nas leituras o quanto as pessoas estão precisando perceber mais a obra, dialogar com ela e não colocá-la dentro de uma gaveta onde acha que cabe. A gente percebeu que os textos, de uma maneira geral, não foram percebidos (pelos diretores e atores).

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