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O ministro Luís Roberto Barroso, do STF, defende a legalização do aborto. Foto: José Cruz/Agência Brasil
O ministro Luís Roberto Barroso, do STF, defende a legalização do aborto. Foto: José Cruz/Agência Brasil| Foto:

O paladino do Iluminismo chique atacou de novo. Na segunda-feira (12), no 1º Congresso Internacional de Direito e Gênero, realizado na Fundação Getúlio Vargas (FGV), o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), declarou que a questão do aborto deve ser resolvida pelo tribunal. Para o ministro, a garantia ao aborto é um direito fundamental das mulheres e nem uma emenda constitucional poderia negar esse acesso, porque, no Brasil, isso violaria “uma cláusula pétrea”. Muita gente rasgou as vestes com a declaração, mas é bom ir com calma: é verdade que em questões de direitos individuais, hoje, a palavra final cabe ao Supremo. O problema é que a existência de um “direito ao aborto” está longe de ser uma leitura correta do direito brasileiro.

É fácil se escandalizar quando um ministro do STF diz que o tribunal não deve satisfações à maioria da população, mas na teoria é isso mesmo. A chamada função “contramajoritária” do Poder Judiciário ganhou força nos Estados Unidos, no século 19, popularizou-se na Europa depois da Segunda Guerra Mundial e começou a ser levada a sério no Brasil com a Constituição de 1988, que turbinou o Judiciário e o Ministério Público. A história é um pouquinho mais complicada – um dia eu conto direito – mas o essencial é o seguinte: tão importante para a compreensão contemporânea das democracias constitucionais quanto a separação dos poderes é a ideia de que os indivíduos têm direitos que não podem ser abolidos ou violentados nem mesmo pela maioria (e a separação de poderes, no fundo, é uma garantia desses direitos).

A coisa se complica um pouco no caso das omissões. É mais fácil perceber que o Congresso ou o Executivo cruzou a linha do aceitável quando eles agem positivamente, aprovando uma lei ou um ato normativo que o STF é chamado a declarar inconstitucional. O tribunal age, como falam os juristas, como “legislador negativo”. Mas e nos casos em que a Constituição manda editar uma lei e o Congresso não age? Nossos constituintes inventaram a Ação de Inconstitucionalidade por Omissão para que o Supremo pudesse alertar as autoridades competentes que elas não estão fazendo o que devem fazer. Mais recentemente, o STF começou a botar as asas de fora, suprindo, ele mesmo, a lacuna que o Congresso deveria fechar e agindo como “legislador positivo”.

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Se isso já causa controvérsia, o caso do aborto é ainda mais complicado. Afinal, aborto é crime previsto no Código Penal de 1940, quase 50 anos mais velho que a Constituição. Mas será que todas as leis aprovadas no país anteriormente à Constituição são compatíveis com ela? Não é preciso ser muito esperto para intuir que não. Por isso, o STF decidiu que a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) seria o instrumento jurídico adequado para se questionar uma lei ou ato normativo anterior à Carta de 1988. Faz sentido: se a Constituição é a lei mais elevada do país, e o Supremo interpreta a Constituição, o tribunal precisa  de um mecanismo para invalidar as leis anteriores a 1988 que porventura contrariem a Constituição. É a garantia do fechamento do sistema.

É por isso que o PSOL e o Instituto Anis recorreram ao STF por meio de uma ADPF, a 442, para declarar a inconstitucionalidade dos artigos do Código Penal que criminalizam o aborto. Nada de novo até aqui, e Barroso está certo em lembrar que, em democracias constitucionais, os tribunais podem – e devem – se contrapor às vontades das maiorias parlamentares e do governo da vez para defender direitos individuais. Especificamente no caso do aborto, países tão diferentes quanto Estados Unidos, em 1973, e Colômbia, em 2006, legalizaram a prática por decisão do Judiciário. Na Alemanha, a Corte Constitucional também teve um papel decisivo, para um lado e depois para o outro, em 1976 e 1992. As pessoas pró-vida têm de ter clareza sobre esse ponto, por uma razão bem simples: se chegar o dia em que o Congresso Nacional resolver legalizar o aborto, o STF deverá ser acionado contra a violação ao direito à vida do feto.

Mas qual o problema, então, com a fala de Barroso? É curioso que o ministro afirme que a discussão sobre aborto é uma questão de direitos fundamentais da mulher e, “para quem acha que existe vida desde o momento da concepção, também os direitos fundamentais do feto”. Note como Barroso coloca os direitos fundamentais do feto na condicional (“para quem…”): no fundo, nem ele nem quem defende a legalização do aborto considera os seres humanos não nascidos tão dignos de valor moral e de proteção jurídica quanto os seres humanos já nascidos e plenamente funcionais.

Por trás de toda a discussão sobre a legalização do aborto, reside esse choque entre as intuições sobre o valor moral do seres humanos funcionais e não funcionais. Sobre isso já escrevi longamente em outra oportunidade, e convido o leitor a tirar um tempinho para ler, mas quem quer pense no assunto não pode chegar a outra conclusão senão que seria inadmissível legalizar a destruição indiscriminada de seres humanos porque sua presença, por 9 nove meses, no corpo das mulheres, violaria o direito à liberdade, à autonomia ou ao que quer mais que Barroso e o PSOL inventem estar em jogo aqui. (Eu sei que um filho é uma responsabilidade bem maior que uma gestação de 9 meses, mas isso não muda o argumento.)

É esta disputa moral, e até ontológica, que os opositores do aborto devem vencer não só nos tribunais, mas na cultura em geral: todo ser humano tem dignidade plena pelo simples fato de ser humano – um ser único pertencente à espécie homo sapiens. Isso é assim desde a concepção. Aliás, essa não é só a melhor posição moral, mas a mais condizente com a Constituição brasileira, cujo artigo 5º é bem claro: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Atenção ao destaque.

Uma última nota: quando fala em “cláusulas pétreas”, Barroso refere-se ao inciso IV ao §4º do artigo 60 da Constituição Federal, que diz que “não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir (…) os direitos e garantias individuais”. Sem contar o problema de ampliar a interpretação desse dispositivo em um país com uma Constituição extensa em que os juízes descobrem novos direitos a todo momento, o ministro fala como se o direito ao aborto fosse líquido e certo, e só estivesse esperando para ser chancelado pelo Supremo. Por que ele está enfatizando esse ponto?

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Para passar dois recados. Primeiro, se o Congresso aprovar a PEC 181/2015, que torna explícito que o direito à vida começa na concepção, isso não impediria o STF de descriminalizar o aborto. Segundo, se o STF descriminalizar o aborto, o Congresso não poderia reverter a decisão, porque uma eventual medida nesse sentido poderia ser, ela também, declarada inconstitucional pelo Supremo. Nesse aspecto, o tribunal é um dos mais poderosos do mundo, e um eventual embate dessa natureza entre a corte e o Congresso nunca aconteceu. É a mágica do equilíbrio entre os poderes, cheia de pontos cegos, que Barroso acredita devam ser todos fechados pela elite pretensamente iluminista que guia as massas pretensamente ignaras.

Entendo que as pessoas estejam bravas com STF, seja pelas liminares do Gilmar Mendes, seja pelas declarações do Barroso sobre o aborto, ou pelo alarmismo de muitos ministros sobre a “onda conservadora”, ou mesmo pelas muitas outras posições que o STF adotou no passado, aparentemente usurpando a soberania popular. É compreensível. Mas a chave para restabelecer a funcionalidade entre os poderes não é reverter a PEC da Bengala para dar a Bolsonaro a oportunidade de indicar 4, e não 2, novos ministros; nem tornar crime de responsabilidade o “ativismo judicial”, como quer o PL 4.784/2016. Sobre isso falamos em outra oportunidade.

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