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Uma carta para meu tataravô, Benett, já morto.
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Foi de uma maneira um tanto prosaica, para a dimensão do acontecimento, que eu deveria atribuir a algum engraçadinho querendo rir da minha cara. Chegou pelo Correio. O endereço do remetente é aqui perto de casa, mas a data da postagem é que me pegou de jeito: mais de cem anos à frente. Sim, é uma carta do futuro. Eu não sei que serviço postal o sujeito usou, mas o fato é que a carta chegou em tempo de eu ler. Bem, vejam vocês mesmos do que se trata:

Benett

Uma carta para meu tataravô, Benett, já morto.

Quando assertivamente falamos que não gostamos de pessoas que assobiam, pessoas que usam bigodinho fino, pessoas que bebem o café direto do bico do bule, pessoas que limpam o suor das axilas nas toalhas de rosto, pessoas que raspam o barro da sola do sapato na escada de sua casa, pessoas que espirram e limpam o nariz no cachorro, pessoas que espalham perdigotos nas bacias de comida do buffet, e etc., alguém irá lhe apontar o dedo e acusá-lo de intolerante com as diversidades. Todas as diversidades, não importam quais, especialmente aquelas que diferem umas das outras.

Estamos no ano de 2117.

Outro dia um homem disse “bom dia” para os vizinhos no elevador de seu prédio e foi duramente reprimido por uma garota hippie que o acusou de não respeitar o direito individual dos niilistas (sim, os hippies de hoje são niilistas) de terem dias tenebrosos e infelizes. A bicho-grilo disse que, agora, sentia-se pressionada pela sociedade para ter um dia alegre, colorido e cheio de vida, coisa que ia de encontro à sua tristeza natural e profunda, e poderia miseravelmente eclipsar a melancolia acolhedora das trevas. A pé de hobbit não podia admitir uma violência dessas contra ela e contra o que ela representa. Um advogado espremido entre as senhoras com sacolinhas de compra, se animou em mover uma ação contra o pobre bonifrate, que já se viu andando pelas ruas vestindo apenas um barril preso a dois suspensórios, por conta da grana que voaria de sua conta bancária direto para o bolso do rábula oportunista, em uma quase provável condenação.

O Natal foi abolido no País no dia 25/12/2100.

Em um movimento orquestrado de forma magistral pela ACAC – Associação dos Comerciários Anti-consumistas- e pela Igreja da Realidade Paralela – uma Igreja que acredita que, em uma realidade paralela, Deus não existe- consumou-se o, digamos, golpe, na madrugada de um feriado prolongado, em votação sigilosa, na ALS – Assembleia Legislativa Secreta, um lugar onde deputados e senadores exercem suas funções e ninguém ninguém tem a menor ideia de onde fica.

A Ordem dos Advogados Oportunistas processou individualmente todos os cidadãos do País por silenciarem e, por consequência, se omitirem de tal decisão – prejudicando diretamente a OAO, que não teria mais rendimentos gerados por ações contra fabricantes de brinquedos. Não preciso dizer que todos os cidadãos perderam.

O garoto que conseguiu ser costurado a um cachorro.

A legislação foi flexível e o menino de 5 anos, orientado por seus pais e um astuto cirurgião plástico, conseguiu na justiça o direito de tornarem-se irmãos siameses. Apesar da ideia um tanto controversa, população apoiou o direito do menino de ficar para sempre costurado em seu melhor amigo, enxergando ali uma brecha para o direito que os cidadãos têm de fazer o que bem entenderem com os seus corpos. O garoto recebeu apoio do AUQCQPL – Artistas Unidos por Qualquer Causa que Pareça Legal e políticos progressistas do PPO – Partido dos Políticos Oportunistas. No final, todos ficaram felizes por eles. Exceto meu cãozinho, rosnou um pouco.

Os juízes, por fim, conquistaram o direito a mais uma verba milionária mensal chamada Vale Existência. O benefício é destinado a todos os magistrados que comprovem estarem vivos – para isso basta ir ào INSS e manter-se respirando por mais de 30 segundos- e, pode ser ampliada para o caso de um juiz levar uma vida dupla ou ter dupla personalidade.

Meu querido avô Benett. Infelizmente não nos conhecemos, mas eu adoraria que você soubesse como é a vida aqui na República Socialista Islâmica Agnóstica Ateísta Evangélica do Brasil em 2117. Sei que você apoiava causas como a dos gays, feminismo, era contra o racismo, e lutava com seus desenhos contra a corrupção. Acredite, as coisas melhoraram bastante. A homofobia e o racismo praticamente desapareceram, as mulheres conquistaram seus direitos. Já a corrupção ela foi aprovada unanimemente por parlamentares, graças a um acordo entre a oposição – que está no governo- e a situação – que é contra o governo.

A política, você pode não acreditar, melhorou. Ontem mesmo o presidente da república resolveu mudar de sexo novamente. É a terceira vez em um ano. Quando a popularidade despenca, ele faz uma operação e os números voltam a subir. Outra mania é mudar de etnia. Começou como oriental, adotou a linha afro e, agora, tem se esforçado para ser albino.

Mas é, isso. Em breve mando mais notícias do futuro.

De seu tataraneto, #YP&*4. ( sim, esse é um nome de meu tempo).”

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